quinta-feira, 7 de outubro de 2010

ESCOLA ESTADUAL SANTOS DUMONT
FILOSOFIA
PROFESSOR: RODRIGO SOUZA                       TURNO: NOITE

O PROBLEMA DO CONHECIMENTO

            Você já se perguntou se a realidade é de fato aquilo que seus sentidos informam que é? Será que aquilo que você julga conhecer não sofre uma distorção como na imagem abaixo, onde temos a impressão de que as pessoas estão subindo a escada  continuamente? A teoria do conhecimento se interessa por esse tipo de problema. Em primeiro lugar, porque os sentidos do tato, da visão, da audição, do olfato e do gosto
são os principais instrumentos de conhecimento de que dispomos no dia-a-dia. Em segundo lugar, por não serem os únicos. A razão também é nossa guia. Mas até que ponto podemos confiar nos sentidos para conhecer as coisas? Quais os campos de atuação da razão? Quais seus limites? Será que existe algum critério ou princípio de conhecimento que assegure a certeza e a verdade?


Um Problema Chamado “Conhecimento”
            A questão do conhecimento é, provavelmente, o problema mais antigo da filosofia. É verdade que a produção e organização de conhecimentos técnicos, artísticos, agrícolas, etc., é anterior ao conhecimento filosófico iniciado pelos pré-socráticos.

                               (...)no espaço de alguns séculos, a Grécia conheceu, em sua vida social e espiritual,                                         transformações decisivas. Nascimento da Cidade e do Direito, advento, entre os                                            primeiros filósofos, de um pensamento de tipo racional e de uma organização                                                         progressiva do saber em um corpo de disciplinas positivas diferenciadas: ontologia,                                             matemática, lógica, ciências da natureza, medicina, moral, política, criação
                               de formas de arte novas, de novos modos de expressão, correspondendo à necessidade                                                de autentificar os aspectos até então desconhecidos da experiência humana: poesia lírica                     e teatro trágico nas artes da linguagem, escultura e pintura concebidas como artifícios                                            imitativos nas artes plásticas. (VERNANT, 1973, p. 04)

            Antes mesmo do nascimento da filosofia na Grécia antiga do séc. V a.C. já há uma cultura estabelecida, sobretudo nos textos épicos de Hesíodo e Homero, mas também na poesia lírica e nos conhecimentos rudimentares que os gregos do século VI a.C. tinham sobre astronomia.
            Ao se constituir, a filosofia provoca um afastamento gradual e doloroso desta tradição. Os heróis e os valores presentes nas histórias de Homero e Hesíodo são questionados pelos primeiros filósofos. A tradição mítica entra em crise e a filosofia passa a absorver questões como a origem do universo, o bem universal, o que é o ser, a organização política de uma cidade, etc. É provavelmente neste momento, por volta da metade do século V a.C. em Atenas, que podemos situar o nascimento de uma preocupação com as condições em que se dá o conhecimento.
            Mas por que o conhecimento é um tema exclusivamente filosófico? Antes do advento da filosofia não existe o problema? O helenista Jean-Pierre Vernant diz que a preocupação com o conhecimento puro, isto é, o saber que não carrega traços religiosos ou míticos, é uma característica dos primeiros filósofos. Homens como Tales, Anaximandro, Anaxímenes apresentam em suas investigações uma teoria, uma visão geral do mundo que explica racionalmente a estrutura física e espiritual desse mundo. Vernant afirma ainda que esses primeiros pensadores tinham plena consciência de que produziam um conhecimento radicalmente novo e, em muitos pontos, oposto à tradição religiosa. (VERNANT, 1973, p. 156-8)

Entre a Teoria e Prática
            Diversos testemunhos mostram, na verdade, que eles [os gregos] puderam, bem cedo, abordar certos problemas técnicos ao nível da teoria, utilizando para isso os conhecimentos científicos da época. Desde o século VI que uma obra como o canal subterrâneo construído em Samos pelo arkhitéktón [arquiteto] Eupalino de Mégara pressupõe o emprego de processos já difíceis de triangulação. Há inúmeras razões para acreditar-se que não estamos diante de um caso isolado. O termo arkhitéktón, em Platão e Aristóteles, designa, por oposição ao operário ou ao artesão que executa  o trabalho, o profissional que dirige os trabalhos do alto: sua atividade é de ordem intelectual, essencialmente matemática. Possuindo os elementos de um saber teórico, ele pode transmití-lo por um ensinamento de caráter racional, muito diferente da aprendizagem prática. (...) o arkhitéktón, no âmbito de sua atividade – arquitetura e urbanismo, construção de navios, engenhos de guerra, decorações e maquinarias teatrais – apóia-se em uma techne [arte, técnica] que se apresenta sob a forma de uma teoria mais ou
menos sistemática. (VERNANT, 1973, p. 247)

O Conhecimento como Justificação Teórica
            Ao falar do conhecimento usamos bastante o termo “problema”. Essa expressão vem do grego e significa literalmente “obstáculo”, “aquilo que está lançado”, o que é “saliente”. Para que o estudo de qualquer tema seja profundo, é sempre útil saber de antemão a problemática que se quer investigar. Isso também vale para a teoria do conhecimento.             De acordo com Franklin Leopoldo e Silva (1985), os principais problemas que a teoria do conhecimento deve investigar são:
1)  as fontes primeiras de todo conhecimento;
2)  os processos que fazem com que os dados se transformem em juízos ou afirmações acerca de algo;
3)  a forma adequada de descrever a atividade pensante do  sujeito frente ao objeto do conhecimento;
4)  O  âmbito do que pode ser conhecido segundo as regras de verdade.

As Fontes do Conhecimento
            Um dos temas tratados na teoria do conhecimento – e que se enquadra no problema das fontes do conhecimento – é a relação entre sensação, crença e conhecimento. O professor Newton Carneiro da Costa, especialista em lógica e teoria do conhecimento científico, defende, por exemplo, que todo conhecimento é crença, mas nem toda crença é conhecimento. Explica Da Costa:
                               O Sr. X pode acreditar (crer) que há vida em Netuno e ser um fato que em tal planeta aja                  vida, inclusive análoga a da Terra. Todavia, ainda não se tem conhecimento em acepção                              estrita, a menos que X possua justificação para sua crença.” (DA COSTA, 1997, p. 22)
            O que se passa neste caso é que pode haver uma coincidência entre a crença do Sr. X e a realidade da existência objetiva de vida em Netuno. Mas o Sr. X não sabe em que condições há vida lá, que procedimentos foram usados para se constatar isso, etc. Da Costa afirma que, pelo menos em ciência – mas, defendemos nós, igualmente em teoria do conhecimento – para se ter conhecimento é preciso ter uma crença justificada. Isso quer dizer que, se o tópico é da área de matemática pura, você precisará demonstrar aquele ponto que diz conhecer, se for um caso de física ou economia, terá que mostrar conhecimento das leis que governam tais áreas, ter acesso aos testes críticos, etc.
            O que foi dito acima nos leva a constatar que uma pessoa tem basicamente três níveis de consciência, cada qual correspondendo a uma perspectiva que dá corpo a sua visão do mundo. Esses três níveis são: sensação, crença e conhecimento. A sensação é o nível em que nosso contato com o mundo é puramente físico ou emocional. A crença, por seu lado, é um estado mental, uma representação de um determinado estado de coisas. Segundo Moser (2004), a crença fornece ao indivíduo uma espécie de esquema do mundo. Nesse sentido, ela mantém uma conexão importante com o conhecimento, como veremos. Por fim, o conhecimento propriamente dito é a capacidade de justificarmos e validarmos nossas sentenças sobre as coisas.

ATIVIDADE

Em grupos, responda as questões abaixo e apresente as respostas para debate.
1.  Qual é a relação entre conhecimento e necessidades humanas? Discuta com os colegas esse problema, examinando o tema a partir dos seguintes pontos:
a)  Pense num corpo de conhecimentos (teoria) de geometria, arquitetura, náutica, filosofia, política, etc., que foi se constituindo à medida que cresciam as dificuldades que o desenvolvimento dos aglomerados urbanos gerou, desde os gregos até nossos dias.

PERSPECTIVAS DO CONHECIMENTO
            As condições materiais nas quais o sujeito está inserido influenciam seu modo de pensar?
            O pensamento é anterior à experiência?
            O conhecimento é produto da experiência ou da razão?
            Penso, logo existo
            As lições cartesianas sobre o conhecimento fizeram escola na filosofia. Gerações inteiras de filósofos, de Kant a Sartre, passaram pelos textos cartesianos. O motivo está no gênio de Descartes, que investigou a fundo grandes classes de problemas que ocupam os filósofos desde o nascimento da filosofia, a saber: o que é substância, o problema da relação entre Mente e Corpo, a noção de Sujeito, o problema do
Movimento na física, as Paixões da Alma, os conceitos de Finalidade, Verdade, identidade, Erro e outros.
                                               Na quarta parte do Discurso do Método encontramos o que pode ser                                                  considerado o ponto de partida de toda a filosofa moderna e contemporânea:
                               Enquanto eu queria pensar que tudo era falso, cumpria necessariamente que eu, que                                       pensava, fosse alguma coisa e, notando que esta verdade: eu penso, logo existo, era tão                                            firme e tão certa (...) julguei que podia aceitá-la, sem escrúpulo, como o primeiro                                     princípio da Filosofia que procurava. (Descartes, 1962, p. 66)
            Ao examinar as fontes do conhecimento, Descartes se detém num dado difícil de ser contestado: o fato de que penso, enquanto duvido, é  sempre um dado verdadeiro. É importante encarar esse juízo de Descartes menos como um raciocínio lógico do que uma constatação a que o filósofo chega. Como explica Lebrun: O cogito não é um raciocínio: é uma constatação de fato. Mas Descartes dá ao cogito o aspecto de um raciocínio, toda vez que deseja destacar o caráter necessário da ligação que o mesmo contém. (DESCARTES, 1962)
            O “logo” (donc) é a marca da necessidade que se segue da dúvida. Esta, por sua vez, não importa como ato, ou seja, não é a dúvida em si que importa, como se ela fosse um método. Ela é um momento do raciocínio. Podemos entender o argumento de Descartes da seguinte forma: o raciocínio todo engloba a “dúvida” e o “penso”. O resultado geral do raciocínio é: duvido, logo, penso, logo sou.
            Descartes escreveu também, dentre outros títulos, aquela que é considerada sua obra prima filosófica (podemos dizer que o Discurso do Método é o texto que ficou popular): Meditações Sobre a Primeira Filosofia. Escrito em tom de confissão, é um retrato visceral da gênese e dos fundamentos do conhecimento humano, além de tratar-se da obra em que Descartes apresenta seu melhor trabalho de argumenta-
ção e defesa de seus pontos de vista.
            Nas Meditações Descartes mostra que a verdadeira filosofia deve ser analítica, isto é, deve consistir num exame exaustivo dos elementos essenciais de um conceito com o objetivo de chegar em dados claros e  seguros para, progressivamente, constituir o corpo de saberes que está fora de qualquer dúvida. Embora o termo “analítico” tenha muitos significados em filosofia, em geral ele está associado a uma espécie de “profissionalização” do trabalho filosófico que ganhou consistência há mais de 70 anos a partir dos trabalhos dos ingleses George Edward Moore (1873-1958), Bertrand RusselI (1872-1970), Gilbert Ryle (1900-1976) e do austríaco Ludwig Wittgenstein (1889-1951), para ficar apenas entre os mais célebres.

ATIVIDADE
Com base nos textos lidos responda em seu caderno:
1.         Qual a importância da dúvida no processo de conhecimento?
2.         Selecione um conjunto de informações, começando pelas impressões da infância, as informações aprendidas no seio familiar e, por fim, o que você aprende na escola hoje e:
a)  Faça um cuidadoso exame: qual o grau de confiança que você pode ter nelas.
b)  Seminário.
c)  Apresente para a turma o resultado de seu estudo.

Hume e a Experiência no Processo de Conhecimento
A principal obra filosófica de David Hume teve duas partes publicadas em 1739 em Londres e chamava-se Tratado da Natureza Humana (Treatise of Human Nature). A última parte foi publicada em 1740. Hume tinha no momento pouco mais de 25 anos. As três partes tratavam, respectivamente, do “Entendimento”, das “Paixões” e da “Moral”. Hume esperava que sua obra repercutisse nos meios filosóficos londrinos, mas a recepção foi fria e desdenhosa. Cerca de nove anos mais tarde Hume publica o texto Investigação Acerca do Entendimento Humano. Trata-se de uma versão mais popular do conteúdo do primeiro livro do Tratado. Na seção II da Investigação Hume diz que as percepções podem ser divididas em duas classes: as menos fortes são as idéias ou pensamentos. A outra categoria de percepções recebe o nome de impressões. Hume dá um sentido bastante amplo ao termo: “(...) pelo termo impressão, entendo, pois, todas as nossas percepções mais vivas, quando ouvimos, vemos, sentimos, amamos, odiamos, desejamos ou queremos.” (HUME, 1973)
            Hume diz que aquelas percepções chamadas “fracas”, que são as idéias, são originadas a partir da classe de percepções “fortes”, as impressões. Hume não diz o que exatamente ele entende por “forte” nesse contexto. Ele pretende mostrar que os pensamentos são sensações que perderam a conexão imediata, atual, com o objeto causador da sensação. Neste sentido as imagens que compõem o pensamento são percepções “fracas”, pois sua intensidade não é a mesma da impressão.
            Trata-se de uma tese extremamente arrojada. Ela contesta grande parte da tradição filosófica que construía conceitos com base em teses acerca da superioridade da razão e dos juízos universais. Como explica Plínio J. Smith:
                               Dois argumentos são oferecidos em favor da tese de que as impressões são causas das                                  idéias. O primeiro deles começa, no Tratado, com a revisão da correspondência entre                                       idéias e impressões simples, e invoca a conjunção constante entre elas. (...) Como não se                       pode imputar ao acaso essa conexão que se mantém constante num número infinito de                                             casos, a existência da relação causal é manifesta e só resta determinar o que é causa do                                   quê. (...) O segundo argumento procede pelo caminho inverso, partindo da ausência de                                  impressões quando se tem um defeito nos órgãos dos sentidos que os impede de                                      funcionar. Nos cegos ou surdos, há não apenas a ausência de impressão, como também                                            a da idéia correspondente. (...) Assim, mostra-se que, sem a impressão, não há idéia e,                                                com a impressão, tem-se a idéia correspondente.” (SMITH, 1995)
Da Distinção entre Conhecimento e Probabilidade
            David Hume distingue conhecimento e probabilidade. No conhecimento as “relações de idéias são dependentes das próprias idéias”. Para que essa relação se altere é preciso que uma idéia se altere (SMITH, 1995). Hume dá como exemplo a igualdade entre a soma dos ângulos internos de um triângulo e dois ângulos retos. Enquanto a idéia de triângulo não se alterar, essa igualdade será sempre verificada. Por outro lado, existe o que Hume chama de probabilidade, cujas relações não são as mesmas do conhecimento. A probabilidade é um conceito que trata de relações de fato, não de razão. Ao contrário do conhecimento, no qual negar a relação implica contradição, na probabilidade negar a relação é uma possibilidade. Para Hume existem três relações na
probabilidade: a identidade, as situações no tempo e lugar e a causalidade.
            Em relação à causalidade, Hume diz que é um raciocínio baseado  em conexões de causa e efeito constatados na experiência. Segundo Hume, quando dizemos que o fato A causou B e não há nenhuma experiência que sustente a relação, trata-se de um raciocínio arbitrário. Nesse sentido, Hume critica os que recorrem à razão para esclarecer a origem da idéia de causalidade e, assim, crêem que as relações de causas e efeitos possam se constituir em objetos de genuíno conhecimento. O raciocínio de causa e efeito é, em síntese, um raciocínio provável, cujo fundamento só é dado na experiência.

ATIVIDADE

Após a leitura do texto a respeito de Hume responda em seu caderno.

1.         O que são idéias de acordo com Hume?
2.         Como as idéias se formam?
3.         Qual a diferença entre conhecimento e probabilidade?
4.         Como formamos a noção de causalidade? 

sexta-feira, 10 de setembro de 2010

A liberdade

Dostoievski escreveu: “Se Deus não existisse, tudo seria permitido”. Aí se situa o ponto de partida do existencialismo.
            Com efeito, tudo é permitido se Deus não existe; fica o homem, por conseguinte, abandonado, já que não encontrar em si, nem fora de si, uma possibilidade a que se apegue. Antes de mais nada, não há desculpas para ele.
            Se, com efeito, a existência precede a essência, não será nunca possível referir uma explicação a uma natureza humana dada e imutável; por outras palavras, não há determinismo, o homem é livre, o homem é liberdade.
            Se, por outro lado, Deus não existe, não encontramos diante de nós valores ou imposições que nos legitimem o comportamento. Assim, não temos nem atrás de nós nem diante de nós, no domínio luminoso dos valores, justificações ou desculpas. Estamos sós e sem desculpas.
            É o que traduzirei dizendo que o homem está condenado a ser livre. Condenado porque não se criou a si próprio; e, no entanto, livre porque, uma vez lançado ao mundo, é responsável por tudo quanto fizer.
            O existencialista não crê na força da paixão. Não pensará nunca que uma bela paixão é uma torrente devastadora que conduz fatalmente o homem a certos atos e que, por conseguinte, tal paixão é uma desculpa. Pensa, sim, que o homem é responsável por essa sua paixão.
            O existencialista não pensará também que o homem pode encontrar auxílio num sinal dado sobre a Terra, e que o há de orientar; porque pensa que o homem decifra ele mesmo esse sinal como lhe aprouver.
            Pensa, portanto, que o homem, sem qualquer apoio e sem qualquer auxílio, está condenado a inventar o homem.                         
                                                                                                          SARTRE, Jean-Paul.
                                                                                              O existencialismo é um humanismo, p. 9.

quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Concepção da liberdade como possibilidade objetiva


            Nascer é, simultaneamente, nascer do mundo e nascer para o mundo. Sob o primeiro aspecto, o mundo já está constituído e somos solicitados por ele. Sob o segundo aspecto, o mundo não está inteiramente constituído e estamos abertos a uma infinidade de possíveis. Existimos, porém, sob os dois aspectos ao mesmo tempo. Não há, pois, necessidade absoluta nem escolha absoluta, jamais sou como uma coisa e jamais sou uma pura consciência… A situação vem em socorro da decisão e, no intercâmbio entre a situação e aquele que a assume, é impossível delimitar a  “parte que  cabe à situação” e a “parte que cabe à liberdade”.
            Tortura-se um homem para fazê-lo falar. Se ele recusa dar nomes e endereços que lhe querem arrancar, não é por sua decisão solitária e sem apoios no mundo. É que ele se sente ainda com seus companheiros e ainda engajado numa luta comum; ou é porque, desde há meses ou anos, tem enfrentado essa provocação em pensamento e nela apostara toda sua vida; ou, enfim, é porque ele quer provar, ultrapassando-a, o que ele sempre pensou e disse sobre a liberdade.
            Tais motivações não anulam a liberdade, mas lhe dão ancoradouro no ser. Ele não é uma consciência nua que resiste à dor, mas o prisioneiro com seus companheiros, ou com aqueles que ama e sob cujo olhar ele vive, ou, enfim, a consciência orgulhosamente solitária que é, ainda, um modo de estar com os outros… Escolhemos nosso mundo e nosso mundo nos escolhe…
            Concretamente tomada, a liberdade é sempre o encontro de nosso interior com o exterior, degradando-se, sem nunca tornar-se nula, à medida que diminui a tolerância dos dados corporais e institucionais de nossa vida. Há um campo de liberdade e uma “liberdade condicionada”, porque tenho possibilidades próximas e distantes…
            A escolha de vida que fazemos tem sempre lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas. Minha liberdade pode desviar minha vida do sentido espontâneo que teria, mas o faz deslizando sobre este sentido, esposando-o inicialmente para depois afastar-se dele, e não por uma criação absoluta…
            Sou uma estrutura psicológica e histórica. Recebi uma maneira de existir, um estilo de existência. Todas as minhas ações e meus pensamentos estão em relação com essa estrutura. No entanto, sou livre, não apesar disto ou aquém dessas motivações, mas por meio delas, são elas que me fazem comunicar com minha vida, com o mundo e com minha liberdade.


Merleau-Ponty

Três grandes concepções filosóficas da liberdade


            Na história das idéias ocidentais, necessidade e contingência foram representadas por figuras míticas. A primeira, pelas três Parcas ou Moiras, representando a fatalidade, isto é, o destino inelutável de cada um de nós, do nascimento à morte. Uma das Parcas ou Moiras era representada fiando o fio de nossa vida, enquanto a outra o tecia e a última o cortava, simbolizando nossa morte. A contingência (ou o acaso) era representada pela Fortuna, mulher volúvel e caprichosa, que trazia nas mãos uma roda, fazendo-a girar de tal modo que quem estivesse no alto (a boa fortuna ou boa sorte) caísse (infortúnio ou má sorte) e quem estivesse embaixo fosse elevado. Inconstante, incerta e cega, a roda da Fortuna era a pura sorte, boa ou má, contra a qual nada se poderia fazer, como na música de Chico  Buarque: “Eis que chega a roda-viva, levando a saudade pra lá”.
            As teorias éticas procuraram sempre enfrentar o duplo problema da necessidade e da contingência, definindo o campo da liberdade possível.
            A primeira grande teoria filosófica da liberdade é exposta por Aristóteles em sua obra Ética a Nicômaco e, com variantes, permanece através dos séculos, chegando até o século XX, quando foi retomada por Sartre. Nessa concepção, a liberdade se opõe ao que é condicionado externamente (necessidade) e ao que acontece sem escolha deliberada (contingência).
         Diz Aristóteles que é livre aquele que tem em si mesmo o princípio para agir ou não agir, isto é, aquele que é causa interna de sua ação ou da decisão de não agir. A liberdade é concebida como o poder pleno e incondicional da vontade para determinar a si mesma ou para ser autodeterminada. É pensada, também, como ausência de constrangimentos externos e internos, isto é, como uma capacidade que não encontra obstáculos para se realizar, nem é forçada por coisa alguma para agir. Trata-se da espontaneidade plena do agente, que dá a si mesmo os motivos e os fins de sua ação, sem ser constrangido ou forçado por nada e por ninguém.
            Assim, na concepção aristotélica, a liberdade é o princípio para escolher entre alternativas possíveis, realizando-se como decisão e ato voluntário. Contrariamente ao necessário ou à necessidade, sob a qual o agente sofre a ação de uma causa externa que o obriga a agir sempre de uma determinada maneira, no ato voluntário livre o agente é causa de si, isto é, causa integral de sua ação. Sem dúvida, poder-se-ia dizer que a vontade livre é determinada pela razão ou pela inteligência e, nesse caso, seria preciso admitir que não é causa de si ou incondicionada, mas que é causada pelo raciocínio ou pelo pensamento.
            No entanto, como disseram os filósofos posteriores a Aristóteles, a inteligência inclina a vontade numa certa direção, mas não a obriga nem a constrange, tanto assim que podemos agir na direção contrária à indicada pela inteligência ou razão. É por ser livre e incondicionada que a vontade pode seguir ou não os conselhos da consciência. A liberdade será ética quando o exercício da vontade estiver em harmonia com a direção apontada pela razão.

Sartre levou essa concepção ao ponto limite. Para ele, a liberdade é a escolha incondicional que o próprio homem faz de seu ser e de seu mundo. Quando julgamos estar sob o poder de forças externas mais poderosas do que nossa vontade, esse julgamento é uma decisão livre, pois outros homens, nas mesmas circunstâncias, não se curvaram nem se resignaram.
            Em outras palavras, conformar-se ou resignar-se é uma decisão livre, tanto quanto não se resignar nem se conformar, lutando contra as circunstâncias. Quando dizemos estar fatigados, a fadiga é uma decisão nossa. Quando dizemos estar enfraquecidos, a fraqueza é uma decisão nossa. Quando dizemos não ter o que fazer, o abandono é uma decisão nossa. Ceder tanto quanto não ceder é uma decisão nossa.
            Por isso, Sartre afirma que estamos condenados à liberdade. É ela que define a humanidade dos humanos, sem escapatória. É essa idéia que encontramos no poema de Carlos Drummond, quando afirma que somos maiores do que o “vasto mundo”. É ela também que se encontra no poema de  Vicente de Carvalho, quando nos diz que a felicidade  “está sempre apenas onde a pomos” e  “nunca a pomos onde nós estamos”. Somos agentes livres tanto para ter quanto para perder a felicidade.
            A segunda concepção da liberdade foi, inicialmente, desenvolvida por uma escola de Filosofia do período helenístico, o estoicismo, ressurgindo no século XVII com o filósofo Espinosa e, no século XIX, com Hegel e Marx. Eles conservam a idéia aristotélica de que a liberdade é a autodeterminação ou ser causa de si. Conservam também a idéia de que é livre aquele que age sem ser forçado nem constrangido por nada ou por ninguém e, portanto, age movido espontaneamente por uma força interna própria. No entanto, diferentemente de Aristóteles e de Sartre, não colocam a liberdade no ato de escolha realizado pela vontade individual, mas na atividade do todo, do qual os indivíduos são partes.
            O todo ou a totalidade pode ser a Natureza – como para os estóicos e Espinosa  -, ou a Cultura  – como para Hegel  – ou, enfim, uma formação histórico-social  – como para Marx. Em qualquer dos casos, é a totalidade que age ou atua segundo seus próprios princípios, dando a si mesma suas leis, suas regras, suas normas. Essa totalidade é livre em si mesma porque nada a força ou a obriga do exterior, e por sua liberdade instaura leis e normas necessárias para suas partes (os indivíduos). Em outras palavras, a liberdade, agora, não é um poder individual incondicionado para escolher  – a Natureza não escolhe, a Cultura não escolhe, uma formação social não escolhe  -, mas é o poder do todo para agir em conformidade consigo mesmo, sendo necessariamente o que é e fazendo necessariamente o que faz.
            Como podemos observar, essa concepção não mantém a oposição entre liberdade e necessidade, mas afirma que a necessidade (as leis da Natureza, as normas e regras da Cultura, as leis da História) é a maneira pela qual a liberdade do todo se manifesta. Em outras palavras, a totalidade é livre porque se põe a si mesma na existência e define por si mesma as leis e as regras de sua atividade; e é necessária porque tais leis e regras exprimem necessariamente o que ela é e faz. Liberdade não é escolher e deliberar, mas agir ou fazer alguma coisa em conformidade com a natureza do agente que, no caso, é a totalidade. O que é, então, a liberdade humana?
São duas as respostas a essa questão:
1. a primeira afirma que o todo é racional e que suas partes também o são, sendo livres quando agirem em conformidade com as leis do todo, para o bem da totalidade;
2. a segunda afirma que as partes são de mesma essência que o todo e, portanto, são racionais e livres como ele, dotadas de força interior para agir por si mesmas, de sorte que a liberdade é tomar parte ativa na atividade do todo. Tomar parte ativa significa, por um lado, conhecer as condições estabelecidas pelo todo, conhecer suas causas e o modo como determinam nossas ações, e, por outro lado, graças a tal conhecimento, não ser um joguete das condições e causas que atuam sobre nós, mas agir sobre elas também. Não somos livres para escolher tudo, mas o somos para fazer tudo quanto esteja de acordo com nosso ser e com nossa capacidade de agir, graças ao conhecimento que possuímos das circunstâncias em que vamos agir.
            Além da concepção de tipo aristotélico-sartreano e da concepção de tipo estóico-hegeliano, existe ainda uma terceira concepção que procura unir elementos das duas anteriores. Afirma, como a segunda, que não somos um poder incondicional de escolha de quaisquer possíveis, mas que nossas escolhas são condicionadas pelas circunstâncias naturais, psíquicas, culturais e históricas em que vivemos, isto é, pela totalidade natural e histórica em que estamos situados. Afirma, como a primeira, que a liberdade é um ato de decisão e escolha entre vários possíveis. Todavia, não se trata da liberdade de querer alguma coisa e sim de fazer alguma coisa, distinção feita por Espinosa e Hobbes, no século XVII, e retomada, no século XVIII, por Voltaire, ao dizerem que somos livres para fazer alguma coisa quando temos o poder para fazê-la.
            Essa terceira concepção da liberdade introduz a noção de possibilidade objetiva. O possível não é apenas alguma coisa sentida ou percebida subjetivamente por nós, mas é também e sobretudo alguma coisa inscrita no coração da necessidade, indicando que o curso de uma situação pode ser mudado por nós, em certas direções e sob certas condições. A liberdade é a capacidade para perceber tais possibilidades e o poder para realizar aquelas ações que mudam o curso das coisas, dando-lhe outra direção ou outro sentido.
            Na verdade, a não ser aqueles filósofos que afirmaram a liberdade como um poder absolutamente incondicional da vontade, em quaisquer circunstâncias (como o fizeram, por razões diferentes, Kant e Sartre), os demais, nas três concepções apresentadas, sempre levaram em conta a  tensão entre nossa liberdade e as condições  – naturais, culturais, psíquicas  – que nos determinam. As discussões sobre as paixões, os interesses, as circunstâncias histórico-sociais, as condições naturais sempre estiveram presentes na ética e por isso uma idéia como a de possibilidade objetiva sempre esteve pressuposta ou implícita nas teorias sobre a liberdade.



CHAUÍ, Marilena. Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000.

terça-feira, 17 de agosto de 2010

A linguagem

A importância da linguagem

Na abertura da sua obra  Política, Aristóteles afirma que somente o homem é um “animal político”, isto é, social e cívico, porque somente ele é dotado de linguagem. Os outros animais, escreve Aristóteles, possuem  voz  (phone) e com ela exprimem dor e prazer, mas o homem possui a  palavra (logos) e, com ela, exprime o bom e o mau, o justo e o injusto. Exprimir e possuir em comum esses valores é o que torna possível a vida social e política e, dela, somente os homens são capazes.

Segue a mesma linha o raciocínio de Rousseau no primeiro capítulo do  Ensaio sobre a origem das línguas:
A palavra distingue os homens dos animais; a linguagem distingue as nações entre si. Não se sabe de onde é um homem antes que ele tenha falado.
Escrevendo sobre a teoria da linguagem, o lingüista Hjelmslev afirma que  “a linguagem é inseparável do homem, segue-o em todos os seus atos”, sendo  “o instrumento graças ao qual o homem modela seu pensamento, seus sentimentos, suas emoções, seus esforços, sua vontade e seus atos, o instrumento graças  ao qual ele influencia e é influenciado, a base mais profunda da sociedade humana.”

Prosseguindo em sua apreciação sobre a importância da linguagem, Rousseau considera que a linguagem nasce de uma profunda necessidade de comunicação:

Desde que um homem foi reconhecido por outro como um ser sensível, pensante e semelhante a si próprio, o desejo e a necessidade de comunicar-lhe seus sentimentos e pensamentos fizeram-no buscar meios para isso.

Gestos e vozes, na busca da expressão e da comunicação, fizeram surgir a linguagem.

Por seu turno, Hjelmslev afirma que a linguagem é  “o recurso último e indispensável do homem, seu refúgio nas horas solitárias em que o espírito luta contra a existência, e quando o conflito se resolve no monólogo do poeta e na meditação do pensador.”

A linguagem, diz ele, está sempre à nossa volta, sempre pronta a envolver nossos pensamentos e sentimentos, acompanhando-nos em toda a nossa vida. Ela não é um simples acompanhamento do pensamento,  “mas sim um fio profundamente tecido na trama do pensamento”, é  “o tesouro da memória e a consciência vigilante transmitida de geração a geração”.
   
A linguagem é, assim, a forma propriamente humana da comunicação, da relação com o mundo e com os outros, da vida social e política, do pensamento e das artes.
  
No entanto, no diálogo  Fedro, Platão dizia que a linguagem é um  pharmakon.  Esta palavra grega, que em português se traduz por poção, possui três sentidos principais: remédio, veneno e cosmético.

Ou seja, Platão considerava que a linguagem pode ser um medicamento ou um remédio para o conhecimento, pois, pelo diálogo e pela comunicação, conseguimos descobrir nossa ignorância e aprender com os outros. Pode, porém, ser um veneno quando, pela sedução das palavras, nos faz aceitar, fascinados, o que vimos ou lemos, sem que indaguemos se tais palavras são verdadeiras ou falsas. Enfim, a linguagem pode ser cosmético, maquiagem ou máscara para dissimular ou ocultar a verdade sob as palavras. A linguagem pode ser conhecimento-comunicação, mas também pode ser encantamento-sedução.

Essa mesma idéia da linguagem como possibilidade de comunicação-conhecimento e de dissimulação-desconhecimento aparece na Bíblia judaico-cristã, no mito da Torre de Babel [Gn 11.1-9], quando Deus lançou a confusão entre os homens, fazendo com que perdessem a língua comum e passassem a falar línguas diferentes, que impediam uma obra em comum, abrindo as portas para todos os desentendimentos e guerras. A pluralidade das línguas é explicada, na Escritura Sagrada, como punição porque os homens ousaram imaginar que poderiam construir uma torre que alcançasse o céu, isto é, ousaram imaginar que teriam um poder e um lugar semelhante ao da divindade.  “Que sejam confundidos”, disse Deus.

A força da linguagem

Podemos avaliar a força da linguagem tomando como exemplo os mitos e as religiões.

A palavra grega  mythos, como já vimos, significa narrativa e, portanto, linguagem. Trata-se da palavra que narra a origem dos deuses, do mundo, dos homens, das técnicas (o fogo, a agricultura, a caça, a pesca, o a rtesanato, a guerra) e da vida do grupo social ou da comunidade. Pronunciados em momentos especiais – os momentos sagrados ou de relação com o sagrado  -, os mitos são mais do que uma simples narrativa; são a maneira pela qual, através das palavras, os seres humanos organizam a realidade e a interpretam.

O mito tem o poder de fazer com que as coisas sejam tais como são ditas ou pronunciadas. O melhor exemplo dessa força criadora da palavra mítica encontra-se na abertura da  Gênese, na Bíblia judaico-cristã, em que Deus cria o mundo do nada, apenas usando a linguagem: “E Deus disse: faça-se!”, e foi feito. Porque Ele disse, foi feito. A palavra divina é criadora.

Também vemos a força realizadora ou concretizadora da linguagem nas liturgias religiosas. Por exemplo, na missa cristã, o celebrante, pronunciando as palavras “Este é o meu corpo” e  “Este é o meu sangue ”, realiza o mistério da Eucaristia, isto é, a encarnação de Deus no pão e no vinho. Também nos rituais indígenas e
africanos, os deuses e heróis comparecem e se reúnem aos mortais quando invocados pelas palavras corretas, pronunciadas pelo celebrante.

A linguagem tem, assim, um poder encantatório, isto é, uma capacidade para reunir o sagrado e o profano, trazer os deuses e as forças cósmicas para o meio do mundo, ou, como acontece com os místicos em oração, tem o poder de levar os humanos até o interior do sagrado. Eis por que, em quase todas as religiões,
existem profetas e oráculos, isto é, pessoas escolhidas pela divindade para transmitir mensagens divi nas aos humanos.
Esse poder encantatório da linguagem aparece, por exemplo, quando vemos (ou lemos sobre) rituais de feitiçaria: a feiticeira ou o feiticeiro tem a força para fazer coisas acontecerem pelo simples fato de, em circunstâncias certas, pronunciarem determinadas palavras. É assim que, nas lendas sobre o rei Artur e os cavaleiros da Távola Redonda, os feiticeiros Merlin e Morgana decidem o destino das guerras, pronunciando palavras especiais dotadas de poder. Também nos contos infantis há palavras poderosas (“Abre-te, Sésamo!”,  “Shazam!”) e encantatórias (“Abracadabra”). Essa dimensão maravilhosa da linguagem da infância é explorada de maneira belíssima pelo cineasta Federico Fellini no filme  Oito e Meio, quando a personagem adulta pronuncia as pal avras  “Asa Nisa Nasa”, trazendo de volta o passado.

As palavras assumem o poder contrário também, isto é, criam tabus. Ou seja, há coisas que não podem ser ditas porque, se forem, não só trazem desgraças, como ainda desgraçam quem as pronunciar. As palavra s-tabus existem nos contextos religiosos de várias sociedades (por exemplo, em muitas sociedades não se deve
pronunciar a palavra “demônio” ou “diabo”, porque este aparece; em vez disso se diz  “o cão”,  “o demo”,  “o tinhoso”). As palavras-tabus não existem  apenas na esfera religiosa, mas também nos brinquedos infantis, quando certas palavras são proibidas a todos os membros do grupo, sob pena de punição para quem as
pronunciar.

Existem, ainda, palavras-tabus na vida social, sob os efeitos da repressão dos costumes, sobretudo os que se referem a práticas sexuais. Assim, para certos grupos sociais de nossa sociedade e mesmo para nossa sociedade inteira, até os anos 60 do século passado, eram proibidas palavras como puta, homossexual,
aborto, amante, masturbação, sexo oral, sexo anal, etc. Tais palavras eram pronunciadas em meios masculinos e em locais privados ou íntimos. Também palavras de cunho político tendem a tornar-se quase tabus: revolucionário, terrorista, guerrilheiro, socialista, comunista, etc.

O poder mágico-religioso da palavra aparece ainda num outro contexto: o do direito. Na origem, o direito não era um código de leis referentes à propriedade (de coisas ou bens, do corpo e da consciência), nem referentes à vida política (impostos, constituições, direitos sociais, civis, políticos), mas era um ato solene no qual o juiz pronunciava uma fórmula pela qual duas partes em conflito fariam a paz.

O direito era uma linguagem solene de fórmulas conhecidas pelo árbitro e reconhecidas pelas partes em litígio.  Era o juramento pronunciado pelo juiz e acatado pelas partes. Donde as expressões “Dou minha palavra” ou  “Ele deu sua palavra”, para indicar o juramento feito e a  “palavra empenhada” ou  “palavra de
honra”. É por isso também que, até hoje, nos tribunais, se faz o(a) acusado(a) e as testemunhas responderem à pergunta:  “Jura dizer a verdade, somente a verdade, nada além da verdade?”, dizendo:  “Juro”. Razão pela qual o perjúrio  – dizer o falso, sob juramento de dizer o verdadeiro – é considerado crime gravíssimo.

Nas sociedades menos complexas do que a nossa, isto é, nas sociedades que são comunidades, onde todos se conhecem pelo primeiro nome e se encontram todos os dias ou com freqüência, a palavra dada e empenhada é suficiente, pois, quando alguém dá sua palavra, dá sua vida, sua consciência, sua honra e assume um compromisso que só poderá ser desfeito com a morte ou com o acordo da outra parte. É por isso que, nos casamentos religiosos, em que os noivos fazem parte da comunidade, basta que digam solenemente a o celebrante  “Aceito”, para que o casamento esteja concretizado.

Independentemente de acreditarmos ou não em palavras místicas, mágicas, encantatórias ou tabus, o importante é que existam, pois sua existência revela o poder que atribuímos à linguagem. Esse poder decorre do fato de que as palavras são núcleos, sínteses ou feixes de significações, símbolos e valores que determinam o modo como interpretamos as forças divinas, naturais, sociais e políticas e suas relações conosco.

A outra dimensão da linguagem

Para referir-se à palavra e à linguagem, os gregos possuíam duas palavras: mythos e  logos. Diferentemente do mythos, logos é uma síntese de três palavras ou idéias: fala/palavra, pensamento/idéia e realidade/ser.  Logos é a palavra racional do conhecimento  do real. É discurso (ou seja, argumento e prova), pensamento (ou seja, raciocínio e demonstração) e realidade (ou seja, os nexos e ligações universais e necessários entre os seres).

É a palavra-pensamento compartilhada: diálogo; é a palavra-pensamento verdadeira: lógica; é a palavra -pensamento de alguma coisa: o  “logia” que colocamos no final de palavras como cosmologia, mitologia, teologia, ontologia, biologia, psicologia, sociologia, antropologia, tecnologia, filologia, farmacologia, etc.

Do lado do  logos desenvolve-se a linguagem como poder de conhecimento racional e as palavras, agora, são  conceitos ou  idéias, estando referidas ao pensamento, à razão e à verdade.

Essa dupla dimensão da linguagem (como  mythos e  logos) explica por que, na sociedade ocidental, podemos comunicar-nos e interpretar o mundo sempre em dois registros contrários e opostos: o da palavra solene, mágica, religiosa, artística, e o da palavra leiga, científica, técnica, puramente racional e conceitual. Não por acaso, muitos filósofos das ciências afirmam que uma ciência nasce ou um objeto se torna científico quando uma explicação que era religiosa, mágica, artística, mítica cede lugar a uma explicação conceitual, causal, metódica, demonstrativa, racional. 

A origem da linguagem

Durante muito tempo a Filosofia preocupou-se em definir a origem e as causas da linguagem.

Uma primeira divergência sobre o assunto surgiu na Grécia: a linguagem é natural aos homens (existe por natureza) ou é uma convenção social? Se a linguagem for natural, as palavras possuem um sentido próprio e necessário; se for convencional, são decisões consensuais da sociedade e, nesse caso, são arbitrárias, isto é, a sociedade poderia ter escolhido outras palavras para designar as coisas. Essa discussão levou, séculos mais  tarde, à seguinte conclusão: a linguagem como capacidade de expressão dos seres humanos é natural, isto é, os humanos nascem com uma aparelhagem física, anatômica, nervosa e cerebral que lhes permite expressarem-se pela palavra; mas as línguas são convencionais, isto é, surgem de condições históricas, geográficas, econômicas e políticas determinadas, ou, em outros termos, são fatos culturais. Uma vez constituída uma língua, ela se torna uma estrutura ou um sistema dotado de necessidade interna, passando a funcionar como se fosse algo natural, isto é, como algo que possui suas leis e princípios próprios, independentes dos sujeitos falantes que a empregam.

Perguntar pela origem da linguagem levou a quatro tipos de respostas:
1. a linguagem nasce por imitação, isto é, os humanos imitam, pela voz, os sons da Natureza (dos animais, dos rios, das cascatas e dos mares, do trovão e do vulcão, dos ventos, etc.). A origem da linguagem seria, portanto, a onomatopéia ou imitação dos sons animais e naturais;
2. a linguagem nasce por imitação dos gestos, isto é, nasce como uma espécie de pantomima ou encenação, na qual o gesto indica um sentido. Pouco a pouco, o gesto passou a ser acompanhado de sons e estes se tornaram gradualmente palavras, substituindo os gestos;
3. a linguagem nasce da necessidade: a fome, a sede, a necessidade de abrigar-se e proteger-se, a necessidade de reunir-se em grupo para defender-se das intempéries, dos animais e de outros homens mais fortes levaram à criação de palavras, formando um vocabulário elementar e rudimentar, que, gradativamente,
tornou-se mais complexo e transformou-se numa língua;
4. a linguagem nasce das emoções, particularmente do grito (medo, surpresa ou alegria), do choro (dor, medo, compaixão) e do riso (prazer, bem-estar, felicidade). Citando novamente Rousseau em seu  Ensaio sobre a origem das línguas:
Não é a fome ou a sede, mas o amor ou o ódio, a piedade, a cólera, que aos primeiros homens lhes arrancaram as primeiras vozes… Eis por que as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas.

Assim, a linguagem, nascendo das paixões, foi primeiro linguagem figurada e por isso surgiu como poesia e canto, tornando-se prosa muito depois; e as vogais nasceram antes das consoantes. Assim como a pintura  nasceu antes da escrita, assim também os homens primeiro cantaram seus sentimentos e só muito depois
exprimiram seus pensamentos.

Essas teorias não são excludentes. É muito possível que a linguagem tenha nascido de todas essas fontes ou modos de expressão, e os estudos de Psicologia Genética (isto é, da gênese da percepção, imaginação, memória, linguagem e inteligência nas crianças) mostra que uma criança se vale de todos esses meios para começar a exprimir-se. Uma linguagem se constitui quando passa dos meios de expressão aos de significação, ou quando passa do expressivo ao significativo. 

Um gesto ou um grito exprimem, por exemplo, medo; palavras, frases e enunciados significam o que é sentir medo, dão conteúdo ao medo.

O que é a linguagem?

A linguagem é um sistema de signos ou sinais usados para indicar coisas, para a comunicação entre pessoas e para a expressão de idéias, valores e sentimentos.

Embora tão simples, essa definição da linguagem esconde problemas complicados com os quais os filósofos têm-se o cupado desde há muito tempo.

Essa definição afirma que:
1. a linguagem é um sistema, isto é, uma totalidade estruturada, com princípios e leis próprios, sistema esse que pode ser conhecido; 
2. a linguagem é um sistema de sinais ou de signos, isto é, os elementos que formam a totalidade lingüística são um tipo especial de objetos, os  signos, ou objetos que indicam outros, designam outros ou representam outros. Por exemplo, a fumaça é um signo ou sinal de fogo, a cicatriz é signo ou sinal de uma ferida, manchas na pele de um determinado formato, tamanho e cor são signos de sarampo ou de catapora, etc. No caso da linguagem, os signos são palavras e os componentes das palavras (sons ou letras);
3. a linguagem indica coisas, isto é, os signos lingüísticos (as pal avras) possuem uma função indicativa ou denotativa, pois como que apontam para as coisas que significam; 
4. a linguagem tem uma função comunicativa, isto é, por meio das palavras entramos em relação com os outros, dialogamos, argumentamos, persuadimos, relatamos, discutimos, amamos e odiamos, ensinamos e aprendemos, etc.;
5. a linguagem exprime pensamentos, sentimentos e valores, isto é, possui uma função de conhecimento e de expressão, sendo neste caso  conotativa, ou seja, uma mesma palavra pode exprimir  sentidos ou significados diferentes, dependendo do sujeito que a emprega, do sujeito que a ouve e lê, das condições ou circunstâncias em que foi empregada ou do contexto em que é usada. Assim, por exemplo, a palavra  água, se for usada por um professor numa  aula de química, conotará o elemento químico que corresponde à fórmula H 2O; se for empregada por um poeta, pode conotar rios, chuvas, lágrimas, mar, líquido, pureza, etc.; se for empregada por uma criança que chora pode estar indicando uma carência ou necessidade como a sede.

A definição nos diz, portanto, que a linguagem é um sistema de sinais com função indicativa, comunicativa, expressiva e conotativa.

No entanto, essa definição não nos diz várias coisas. Por exemplo, como a fala se forma em nós? Por que a linguagem pode indicar coisas externas e também exprimir idéias (internas ao pensamento)? Por que a linguagem pode ser diferente quando falada pelo cientista, pelo filósofo, pelo poeta ou pelo político? Como a
linguagem pode ser fonte de engano, de mal-entendido, de controvérsia ou de mentira? O que se passa exatamente quando dialogamos com alguém? O que é escrever? E ler? Como podemos aprender uma outra língua?

Na resposta a várias dessas perguntas, vamos encontrar uma divergência que já encontramos quando estudamos a razão, a verdade, a percepção ou a imaginação, qual seja, a diferença entre empiristas e intelectualistas.

Empiristas e intelectualistas diante da linguagem

Para os empiristas, a linguagem é um conjunto de imagens corporais e mentais formadas por associação e repetição e que constituem imagens verbais (as palavras). 

As imagens corporais são de dois tipos: motoras e sensoriais. As imagens motoras são as que adquirimos quando aprendemos a articular sons (falar) e letras (escrever), graças a mecanismos anatômicos e fisiológicos. As imagens sensoriais são as que adquirimos quando, graças aos nossos sentidos, à fisiologia de nosso sistema nervoso, sobretudo a de nosso cérebro, aprendemos a ouvir (compreender sons e vozes) e a reconhecer a grafia d os sons (ler). As imagens verbais são aprendidas por associação, em função da freqüência e repetição dos sinais externos que estimulam nossa capacidade motriz e sensorial. A palavra ou
imagem verbal é uma síntese de imagens motoras e sensoriais armazenadas em nosso cérebro.

O que levou a essa concepção empirista da linguagem foi o estudo médico de “perturbações da linguagem”: a afasia (incapacidade para usar e compreender todas as palavras disponíveis na língua); a agrafia (incapacidade para escrever ou para escrever determinadas palavras); a surdez verbal (ouvir as palavras sem
conseguir compreendê-las) e a cegueira verbal (ler sem conseguir entender).

Os médicos que estudaram essas perturbações concluíram que estavam relacionadas com lesões no cérebro e que, portanto, a linguagem era um fenômeno físico (anatômico e fisiológico) do qual não temos consciência
(desconhecemos suas causas), mas de cujos efeitos temos consciência, isto é, falamos, ouvimos, escrevemos, lemos e compreendemos o sentido das palavras. 

A linguagem seria uma soma de causas físicas e de efeitos psíquicos cujos átomos ou elementos seriam as imagens verbais associadas.

Os intelectualistas, porém, apresentam uma concepção muito diferente desta. Embora aceitem que a  possibilidade para falar,  ouvir, escrever e ler esteja em nosso corpo (anatomia e fisiologia) afirmam que a capacidade para a linguagem é um fato do pensamento ou de nossa consciência. A linguagem, dizem eles, é
apenas a tradução auditiva, oral, gráfica ou visível de nosso pensamento e de nossos sentimentos. A linguagem é um instrumento do pensamento para exprimir conceitos e símbolos, para transmitir e comunicar idéias abstratas e valores. A palavra, dizem eles, é uma representação de um pensamento, de uma idéia ou de
valores, sendo produzida pelo sujeito pensante que usa os sons e as letras com essa finalidade.

O pensamento puro seria silencioso ou mudo e formaria, para manifestar-se, as palavras. Duas provas poderiam confirmar essa concepção da linguagem: o fato de que o pensamento procura e inventa palavras; e o fato de que podemos aprender outras línguas, porque o sentido de duas palavras diferentes em duas línguas diferentes é o mesmo e tal sentido é a idéia formada pelo pensamento para representar ou indicar as coisas.

A grande prova dos intelectualistas contra os empiristas foi a história de Helen Keller. Nascida cega, surda e muda, Helen Keller aprendeu a usar a linguagem sem nunca ter visto as coisas e as palavras, sem nunca ter escutado ou emitido um som. Se a linguagem dependesse exclusivamente de mecanismos e disposições corporais, Helen Keller jamais teria chegado à linguagem.

Mas chegou. E chegou quando compreendeu a relação simbólica entre duas expressões diferentes: numa das mãos, sentia correr a água de uma torneira, enquanto a outra mão, na qual segurava uma agulha, guiada por sua professora, ia traçando a palavra  água; quando se tornou capaz de compreender que uma mão traduzia o que a outra sentia, tornou-se capaz de usar a linguagem. Assim, a linguagem, longe de ser um mecanismo instintivo e biológico, seria um fato puro da inteligência, uma atividade intelectual simbólica e de compreensão, uma pura tradução de pensamentos.

As concepções empirista e intelectualista, apesar de suas divergências, possuem dois pontos em comum:
1. ambas consideram a linguagem como sendo fundamentalmente indicativa ou denotativa, isto é, os signos lingüísticos ou as palavras servem apenas para indicar coisas; 
2. ambas consideram a linguagem como um instrumento de representação das coisas e  das idéias, ou seja, as palavras têm apenas uma função ou um uso instrumental representativo. 

Esses dois pontos de concordância fazem com que, para as duas correntes filosóficas, os aspectos conotativos ou a função conotativa da linguagem seja considerada  algo perturbador e negativo. Em outros termos, o fato de que a comunicação verbal se realize com as palavras assumindo sentidos diferentes, dependendo de quem fala e ouve, escreve e lê, do contexto e das circunstâncias em que as enunciamos, é considerado p erturbador porque, afinal, as coisas são sempre o que elas são e as idéias são sempre o que elas são, de modo que as palavras deveriam ter sempre um só e mesmo sentido para indicar claramente as
coisas e representar claramente as idéias.

Por esse motivo, periodicamente, aparecem na Filosofia correntes filosóficas que se preocupam em  “purificar” a linguagem para que ela sirva docilmente às representações conceituais. Tais correntes julgam que a linguagem perfeita para o pensamento é a das ciências e, particularmente, a da matemática e a da física.

Purificar a linguagem 

Uma dessas correntes filosóficas desenvolveu-se no século passado com o nome de positivismo lógico. Os positivistas lógicos distinguiram duas linguagens:
1. a linguagem natural, isto é, aquela que usamos todos os dias e que é imprecisa, confusa, mescla de elementos afetivos, volitivos, perceptivos e imaginativos;
2. a linguagem lógica, isto é, uma linguagem purificada, formalizada (ou seja, com enunciados sem conteúdo e avaliadores do conteúdo  das linguagens científicas e filosóficas), inspirada na matemática e sobretudo na física.
Essa linguagem obedecia a princípios e regras lógicas precisas e funcionava por meio de operações chamadas cálculos simbólicos (semelhantes às operações da matemática), que permitiam avaliar com exatidão se um enunciado era verdadeiro ou falso. Dava-se ênfase à  sintaxe lógica dos enunciados, que asseguraria a verdade representativa e indicativa da linguagem. A conotação foi afastada.

A linguagem lógica era uma metalinguagem, isto é, uma segunda linguagem que falava sobre língua natural e sobre linguagem científica para saber se os enunciados delas eram verdadeiros ou falsos. Assim, por exemplo, na linguagem comum e diária dizemos:  “O livro é de autoria de José Antônio Silva” e, na metalinguagem lógica, diremos:  “A proposição  ‘O livro é de autoria de José Antônio Silva’ é uma proposição verdadeira se e somente se forem preenchidas as condições x, y, z”.

No entanto, descobriu-se, pouco a pouco, que havia expressões lingüísticas que não possuíam caráter denotativo nem representativo, e, apesar disto, eram verdadeiras. Descobriu-se também que havia inúmeras formas de linguagem que não podiam ser reduzidas aos enunciados lógicos e tipo matemático e físico. Descobriu-se, ainda,  que a linguagem usa certas expressões para as quais não existe denotação. Por exemplo, as preposições e as conjunções só têm existência na linguagem e não na realidade.

Além disso, descobriu-se que a redução da linguagem ao cálculo simbólico ou lógico despojava de qualquer verdade e de qualquer pretensão ao conhecimento a ontologia, a literatura, a história, bem como várias ciências humanas, isto é, todas as linguagens que são profundamente conotativas, para as quais a multiplicidade de sentido das palavras e das coisas é sua própria razão de ser. 

Crítica ao empirismo e ao intelectualismo

As concepções empiristas e intelectualistas também sofreram sérias críticas dos estudiosos da linguagem no campo da psicologia.

Os psicólogos Goldstein e Gelb fizeram estudos aprofundados da afasia e descobriram situações curiosas. Por exemplo, ordena-se a um afásico:  “Coloque nesta pilha todas as fitas azuis que você encontrar nesta caixa”. O afásico inicia a separação. Ao encontrar uma fita azul-claro ele a coloca na pilha das fitas azuis,
conforme lhe foi dito, mas também passa a colocar ali fitas verde-claro, rosa-claro e lilás-claro.

Os dois psicólogos observaram, assim, que a palavra  azul não formava uma categoria ou uma idéia geral para o afásico e que, portanto, seu p roblema de linguagem era também um problema de pensamento. No entanto, do ponto devista cerebral ou anatômico, a parte do cérebro destinada à inteligência estava perfeita, sem nenhuma lesão. Com isso, compreendeu-se que os empiristas estavam enganados e q ue a linguagem não é um mero conjunto de imagens verbais, mas é inseparável de uma visão mais global da realidade e inseparável do pensamento.

Esses estudos, porém, não reforçaram a concepção intelectualista, como poderíamos supor. De fato, basta tentarmos imaginar o que seria um pensamento puro, mudo, silencioso para compreendermos que não seria nada, não pensaria nada. Não pensamos sem palavras, não há pensamento antes e fora da linguagem, as palavras não traduzem pensamentos, mas os envolvem e os englobam. É justamente por isso que a criança aprende a falar e a pensar ao mesmo tempo, pois, para ela, uma coisa se torna conhecida e pensável ao receber um nome. Como escreveu Merleau-Ponty, a linguagem é o corpo do pensamento.

A lingüística e a linguagem

Durante o século XIX, o estudo da linguagem ou lingüística tinha como preocupação encontrar a origem da linguagem e das línguas, considerando o estado presente ou atual de uma língua como resultado ou efeito de causas situadas no passado.

A linguagem era estudada sob duas perspectivas: a da filologia, que buscava a história das palavras pelo estudo das  raízes, com o propósito de chegar a uma única língua original, mãe ou matriz de todas as outras; e a da gramática comparada, que estudava comparativamente as línguas existentes com o propósito de encontrar famílias lingüísticas e chegar à língua-mãe original. Nesses estudos, retomava-se a discussão sobre o caráter natural ou convencional da linguagem. Também era comum aos filólogos e gramáticos a idéia de que as línguas se transformam no tempo e que as transformações eram causadas por fatores extralingüísticos (migrações, guerras, invasões, mudanças sociais e econômicas, etc.).

Tais estudos, porém, viram-se diante de problemas que não conseguiam resolver. Um desses problemas foi o aparecimento do estudo das flexões (tempos verbais, maneira de indicar o plural e o singular, aumentativos e diminutivos, declinações), revelando que as línguas mudavam por razões internas e não por fatores externos.

Essa descoberta teve r esultados curiosos. Um deles, aparecido na Alemanha, tomava as flexões como prova de que cada povo tem uma língua diferente porque esta exprimiria o caráter ou o espírito do povo. Haveria línguas doces e propícias aos sentimentos profundos (como a alemã);  línguas rudes e mais voltadas para a prosa e a guerra (como o latim), etc. Em suma, cada estudioso inventava o “caráter da língua” segundo as fantasias e ideologias de sua nação e dos nacionalismos da época.

A partir do século XX, uma nova concepção da linguagem foi elaborada pela lingüística e seus pontos principais são:
  • a linguagem é constituída pela distinç ão entre língua e fala ou palavra: a língua é uma instituição social e um sistema, ou uma estrutura objetiva que existe com suas regras e princípios próprios, enquanto a fala ou palavra é o ato individual de uso da  língua, tendo existência subjetiva por ser o modo como os sujeitos falantes se apropriam da língua e a empregam. Assim, por exemplo, temos a língua portuguesa e a palavra ou fala de Camões, Machado de Assis, Fernando Pessoa, Guimarães Rosa, a sua e a minha; 
  • a língua é uma totalidade dotada de sentido no qual o todo confere sentido  às partes, isto é, as partes não existem isoladas nem somadas, mas apenas pela posição e função que o todo da língua lhes dá e seu sentido vem dessa posição e dessa função. Assim, por exemplo, os signos r e l só existem nas línguas onde a diferença desses sons tem uma função importante para diferenciar sentidos, motivo pelo qual não operam significativamente em chinês e em japonês (ou seja, os chineses usam l indiferentemente para  todas as palavras, sejam elas em  l ou r; os japoneses usam r indiferentemente para todas as palavras, sejam elas em l ou  r). Os signos são os elementos da língua; são valores e não coisas ouentidades, isto é, são o que valem por sua posição e por sua diferença com relação aos demais signos; 
  •  numa língua, distinguem-se signo e significado, ou significante e significado: o signo é o elemento verbal material da língua ( r,  l,  p,  b,  q,  g, por exemplo), enquanto o significado são os conteúdos ou sentidos imateriais (afetivos, volitivos, perceptivos, imaginativos, evocativos, literários, científicos, retóricos, filosóficos, políticos, religiosos, etc.) veiculados pelos signos; o significante é uma cadeia ou um grupo organizado de signos (palavras, frases, orações, proposições, enunciados) que permitem a expressão dos significados e garantem a comunicação;
  •  a relação dos signos ou significantes com as coisas é convencional e arbitrária, mas, uma vez constituída a língua como sistema de relações entre signos/significantes e significados, a relação com as coisas indicadas, nomeadas, expressadas ou comunicadas torna-se uma relação necessária para todos os falantes da língua. Assim, por exemplo, a distinção entre  pa e ba, pata e bata é convencional, mas uma vez fixada pela língua, torna-se necessária e inquestionável; 
  •  como as partes (signos ou significantes) de uma língua recebem seu sentido e sua função pelo lugar que o todo da língua lhes confere, essas partes distinguem-se umas das outras apenas por suas diferenças, e a língua é uma estrutura constituída por diferenças internas ou por oposições pertinentes entre os signos. Por exemplo, em português, existem os signos p e b, d e t porque suas diferenças são pertinentes para o sentido das palavras (dizer  pata e  bata,  dente e  tente é dizer sentidos diferentes); também existe a oposição pertinente entre o  r e o  l, mas tal oposição ou diferença não existe em japonês e em chinês e por isso, como vimos, tais signos não existem nessas línguas. Por relação com sua própria língua, quando um japonês fala o português, é levado a usar sempre o  r (que corresponde a um som  ou signo diferencial existente em japonês, isto é, faz sentido em japonês) e a substituir o  l  por   r. Quando um chinês fala o português ocorre exatamente o contrário, prevalece o l porque este som e signo tem relação com o todo da língua chinesa, e o r não. Em inglês, não existe o signo-som ão e, assim, quando um inglês fala o português, tende a usar  an e  am porque são signos-sons que fazem sentido em inglês. língua, portanto, é feita dessas diferenças internas e por isso se diz que os signos são diacríticos e que a língua é uma estrutura diacrítica;
  •  a língua é um código (conjunto de regras que permitem produzir informação e comunicação) e se realiza através de  mensagens, isto é, pela fala/palavra dos sujeitos que veiculam informações e se comunicam de modo específico e particular (a mensagem possui  um  emissor, aquele que emite ou envia a mensagem, e um  receptor, aquele que recebe e decodifica a mensagem, isto é, entende o que foi emitido);
  •  o sujeito falante possui duas capacidades: a  competência (isto é, sabe usar a língua) e a  performance (isto é, tem seu jeito pessoal e individual de usar a língua); a competência é a participação do sujeito em uma comunidade lingüística e a performance são os atos de linguagem que realiza;
  •  a língua se realiza em duas dimensões: a  sincronia, ou seja, o todo da língua tomado na simultaneidade ou no seu estado atual ou presente; e a diacronia, ou seja, a língua vista sucessivamente, através de suas mudanças no tempo ou de sua história;
  •  a língua é inconsciente, isto é, nós a falamos sem ter consciência de sua estrutura, de suas regras e seus princípios, de suas funções e diferenças internas; vivemos nela e com ela e a empregamos sem necessidade de conhecê-la cientificamente.

Alguns exemplos poderão ajudar-nos a compreender todos esses pontos. Uma língua é como um jogo de xadrez: é um todo no qual cada peça tem seu sentido, seu lugar e sua função por diferença ou por oposição às demais peças. O jogo é uma convenção ou um código com suas regras próprias, princípios e leis, e cada
partida é a maneira como jogadores individuais usam e interpretam as regras, leis e princípios gerais do jogo (a diferença entre os jogadores e os sujeitos falantes é que estes falam a língua respeitando o código, mas sem conhecê-lo conscientemente, enquanto os jogadores precisam conhecer o código para poder jogar).

O jogo existe antes e depois de cada partida. Cada partida rearranja o tabuleiro e chega a resultados diferentes, mas as regras do jogo são sempre as mesmas. Em cada partida, os jogadores podem jogar porque conhecem o código e porque sabem interpretar os lances um do outro, respondendo a cada um deles.

A lingüística veio mostrar algo muito interessante e que explica por que falar uma língua estrangeira ou traduzir um texto estrangeiro não são coisas simples como julgavam os intelectualistas.

Por exemplo, em inglês, é possível dizer  “The man I love ”. Quando traduzimos para o português temos:  “O homem que amo”. Observamos que, em inglês, parece  “faltar” uma palavra: o  “que”. Notamos também que em inglês parece “sobrar ” uma palavra: o  “I”, o “eu”, que não usamos na frase em português. Para um inglês, evidentemente, não falta e nem sobra nada.

Este sentimento de falta ou sobra mostra que a diferença entre o inglês e o português não é de vocabulário, mas de estrutura lingüística. No caso da tradução da palavra inglesa cheese e da palavra francesa  fromage para o português, queijo, temos a impressão de que passamos sem problema de uma língua para outra. Mas
não é o caso.

Quando um inglês usa  cheese, ele está se referindo ou a algo leitoso e cremoso, quase sem gosto, ou a algo mais duro e forte, que se pode comer sem outra coisa. O francês, por seu turno, ao dizer  fromage estará pensando em queijos muito diferentes, dependendo da região onde mora, da hora e do dia em que vai comer
o queijo, sempre acompanhado de pão e vinho.

Para um inglês e para um francês, queijo jamais poderia ser imaginado junto com um doce, enquanto para nós, brasileiros, queijo (de Minas, prato, requeijão baiano) vai bem com goiabada ou com doce de leite, com o pão com manteiga e o café com leite. Assim dizer  cheese não é dizer  fromage nem queijo; dizer fromage não é dizer  cheese nem queijo; dizer queijo não é dizer  cheese nem fromage.

Esse segundo exemplo explica o que os lingüistas querem dizer quando afirmam que o momento da criação de um signo (cheese, fromage, queijo) é arbitrário ou convencional, mas, uma vez criado, passa a ter um sentido necessário naquela língua (cheese é cheese e não é fromage nem queijo).

Esse exemplo nos mostra também que uma língua é algo social,  histórico, determinado por condições específicas de uma sociedade e de uma cultura.

A experiência da linguagem 

Dizer que somos seres falantes significa dizer que temos e somos linguagem, que ela é uma criação humana (uma instituição sociocultural), ao mesmo tempo em que nos cria como humanos (seres sociais e culturais). A linguagem é nossa via de acesso ao mundo e ao pensamento, ela nos envolve e nos habita, assim como a envolvemos e a habitamos. Ter experiência da linguagem é ter uma experiência espantosa:  emitimos e ouvimos sons, escrevemos e lemos letras, mas, sem que saibamos como, experimentamos sentidos, significados, significações, emoções, desejos, idéias.

Após o caminho feito até aqui, podemos voltar à definição inicial que demos da linguagem e nela fazer alguns acréscimos. 

Em primeiro lugar, teremos que especificar melhor que tipo de signo é o signo lingüístico. Por que uma palavra é diferente, por exemplo, da fumaça que indica fogo? Ou, se se preferir, qual é a diferença entre a fumaça-signo-de-fogo, que vejo, e a  palavra  fumaça, que pronuncio ou escuto? A fumaça é uma coisa que
indica outra coisa (fogo). A palavra  fumaça, porém, é um  símbolo, isto é, algo que indica, representa, exprime alguma coisa que é de natureza diferente dela. O símbolo é um  análogo (a bandeira simboliza a nação, por exemplo) e não um efeito da coisa indicada, representada ou exprimida. O símbolo verbal ou palavra me reenvia a coisas que não são palavras: coisas materiais, idéias, pessoas, valores, seres inexistentes, etc. A l inguagem é simbólica e, pelas palavras, nos coloca em relação com o ausente. A linguagem é, pois, inseparável da imaginação.

Em segundo lugar, temos que especificar melhor as várias funções que atribuímos à linguagem (indicativa ou denotativa, comunicativa, expressiva, conotativa) e para isso precisamos indagar com o que a linguagem se relaciona e nos relaciona. Evidentemente, diremos que a linguagem nos relaciona com o mundo e com os outros seres humanos. Mas como se dá essa relação? 

Essa pergunta, como vimos, era central para o Positivismo Lógico. Por seus erros e acertos, ele foi responsável pelo surgimento de uma nova disciplina filosófica, a Filosofia da Linguagem, intimamente ligada às investigações lógicas, transformando-se com elas e graças a elas. A grande preocupação da Filosofia da
Linguagem resume-se numa pergunta: As palavras realmente dizem as coisas tais como são? Descrevem e explicam verdadeiramente a realidade?

Tradicionalmente, dizia-se que a linguagem possuía a forma de uma relação binária, isto é, entre dois termos:
signo verbal  <-> coisa indicada (realidade)
signo verbal  <-> idéia, conceito, valor (pensamento)

No entanto, é possível perceber que essa relação binária não nos explica por que uma palavra ou um signo verbal indica alguma coisa ou alguma idéia, pois, se ele fosse simplesmente denotativo ou indicativo e dual, não poderia haver o fenômeno da conotação, isto é, uma mesma palavra indicando coisas e idéias diferentes.

Tomemos um exemplo a que já nos referimos várias vezes em outros capítulos e que foi muito trabalhado pelo filósofo alemão Frege.  “Estrela da manhã” e “estrela da tarde” indicam Vênus. Mas falar na estrela d’alva, na estrela da tarde, na estrela matutina e na estrela vespertina não é a mesma coisa, ainda que todas
essas expressões se refiram a Vênus. Em cada uma dessas expressões, o sentido de Vênus muda e esse sentido é expresso pelas palavras que se referem ao mesmo planeta. Assim, as palavras indicam-denotam alguma coisa, mas também a conotam, isto é, referem-se aos sentidos dessa coisa.

Imaginemos ou recordemos a leitura de um romance. Começamos a ler entendendo tudo o que o escritor escreveu porque referimos suas palavras a coisas que já conhecemos, a idéias que já possuímos e ao vocabulário comum entre ele e nós. Pouco a pouco, porém, o livro vai ganhando espessura própria, percebemos as coisas de outra maneira, mudamos idéias que já tínhamos, vemos surgir pessoas (personagens) com vida própria e história própria, sentimos que as palavras significam de um modo diferente daquele com o qual estamos habituados a usá-las todo dia.

Uma realidade foi criada e penetramos em seu interior exclusivamente pelas mãos do escritor. Como isso é possível? Como as palavras poderiam criar um mundo, se elas apenas fossem sinais para indicar coisas e idéias já existentes? Com o romance descobrimos que as palavras se referem a  significações,
inventam significações, criam significações. 

Imaginemos ou recordemos um diálogo. Quantas vezes conversando com alguém, dizemos:  “Puxa! Eu nunca tinha  pensado nisso!”, ou então:  “Você sabe que, agora, eu entendo melhor uma idéia que tinha, mas que não entendia muito bem?”, ou ainda:  “Você me fez compreender uma coisa que eu sabia e não sabia que sabia”.

Como essas frases são possíveis? É que a linguagem  tem a capacidade especial de nos fazer pensar enquanto falamos e ouvimos, nos faz compreender nossos próprios pensamentos tanto quanto os dos outros que falam conosco. Ela nos faz pensar e nos dá o que pensar porque se refere a  significados, tanto os já conhecidos por outros quanto os já conhecidos por nós, bem como os que não conhecíamos por estarmos conversando.

Esses exemplos nos levam a considerar a linguagem sob uma forma ternária:
palavra ou signo significante  <->  sentido ou significação; significado  <-> realidade ou mundo (coisas, pessoas) e instituições sociais, políticas, culturais O mundo suscita sentidos e palavras, as significações levam à criação de novas expressões lingüísticas, a linguagem cria novos sentidos e interpreta o mundo de maneiras n ovas. Há um vai-e-vem contínuo entre as palavras e as coisas, entre elas e as significações, de tal modo que a realidade, o pensamento e a linguagem são inseparáveis, suscitam uns aos outros e interpretam-se uns aos outros. 

A linguagem:

  • refere-se ao mundo através das significações e, por isso, podemos nos relacionar com a realidade através da palavra;
  •  relaciona-se com sentidos já existentes e cria sentidos novos e, por isso, podemos nos relacionar com o pensamento através das palavras;  
  • exprime e descobre significados e, por isso, podemos nos comunicar e nos relacionar com os outros;             
  • tem o poder de suscitar significações, de evocar recordações, de imaginar o novo ou o inexistente e, por isso, a literatura é possível.

A linguagem revela nosso corpo como expressivo e significativo, os corpos dos outros como expressivos e significativos, as coisas como expressivas e significativas, o mundo como dotado de sentido e o pensamento como trabalho de descoberta do sentido. As palavras têm sentido e criam sentido.
Como escreve Merleau-Ponty:

A palavra, longe de ser um simples signo dos objetos e das significações, habita as coisas e veicula significações. Naquele que fala, a palavra não traduz um pensamento já feito, mas o realiza. E aquele que escuta recebe, pela palavra, o próprio pensamento.
A linguagem  não traduz imagens verbais de origem motora e sensorial,  nem representa idéias feitas por um pensamento silencioso, mas encarna as significações. 

Linguagem simbólica e linguagem conceitual  

A diferença entre linguagem simbólica e linguagem conceitual é o que deve interessar-nos agora. Fundamentalmente, a linguagem simbólica opera por analogias (semelhanças entre palavras e sons, entre palavras e coisas) e por metáforas (emprego de uma palavra ou de um conjunto de  palavras para substituir outras e criar um sentido poético para a expressão).

A linguagem simbólica realiza-se principalmente como imaginação. A linguagem conceitual procura evitar a analogia e a metáfora, esforçando-se para dar às palavras um sentido direto e não figurado ou figurativo. Isso não quer dizer que a linguagem conceitual seja puramente denotativa. Pelo contrário, nela a conotação é essencial, mas não possui uma natureza imaginativa ou imagética.

A linguagem simbólica (dos mitos, da religião, da  poesia, do romance, do teatro) e a linguagem conceitual (das ciências, da filosofia) diferem sob os seguintes aspectos:
  • a linguagem simbólica é fortemente emotiva e afetiva, enquanto a linguagem conceitual procura falar das emoções e dos afetos sem se confundir com eles e sem se realizar por meio deles;
  •  a linguagem simbólica oferece sínteses imediatas (imagens), enquanto a linguagem conceitual procede por desconstrução analítica e reconstrução sintética dos objetos, fazendo com que acompanhemos cada passo da análise e da síntese;
  •  a linguagem simbólica nos oferece palavras polissêmicas, isto é, carregadas de múltiplos sentidos simultâneos e diferentes, tanto sentidos semelhantes e em harmonia, quanto sentidos opostos e contrários; a linguagem conceitual procura diminuir ao máximo a polissemia e a conotação, buscando fazer com que cada palavra tenha um sentido próprio e que seus diferentes sentidos dependam do contexto no qual é empregada;
  •  a linguagem simbólica leva-nos para dentro dela, arrasta-nos para seu interior pela força de seu sentido, de suas evocações, de sua beleza, de seu apelo emotivo e afetivo; a linguagem conceitual busca convencer-nos e persuadir-nos por meio de argumentos, raciocínios e provas. A linguagem simbólica fascina e seduz; a linguagem conceitual exige o trabalho lento do pensamento; 
  •  a linguagem simbólica nos dá a conhecer o mundo criando um outro, análogo ao nosso, porém mais belo ou mais terrível do que o nosso, mais justo ou mais violento do que o nosso, mais antigo ou mais novo do que o nosso, mais visível ou mais oculto do que o  nosso; a linguagem conceitual busca dizer o nosso mundo, decifrando seu sentido, ultrapassando suas aparências e seus acidentes; 
  •  a linguagem simbólica, privilegiando a memória e a imaginaç ão, nos diz como as coisas ou os homens poderiam ter sido ou poderão ser, voltando-se para um possível passado ou para um possível futuro; a linguagem conceitual busca dizer o nosso presente, fala do necessário, determinando suas causas ou motivos e razões; procura também as linhas de força de suas transformações e o campo dos possíveis, como possibilidade objetiva e não apenas desejada ou sonhada.

RESUMINDO…

A linguagem em sentido amplo (isto é, englobando língua, fala e palavra) é constituída por quatro fatores fundamentais:
1. fatores físicos (anatômicos, neurológicos, sensoriais), que determinam para nós a possibilidade de falar, escutar, escrever e ler;
2. fatores socioculturais, que determinam a diferença entre as línguas e entre as línguas dos indivíduos. Assim, o português e o inglês correspondem a sociedades e culturas diferentes, bem como a linguagem de Machado de Assis e de Guimarães Rosa correspondem a momentos diferentes da cultura no Brasil;
3. fatores psicológicos (emocionais, afetivos, perceptivos, imaginativos, lembranças, inteligência) que criam em nós a  necessidade e o desejo da informação e da comunicação, bem como criam nossa capacidade para a performance lingüística, seja ela cotidiana, artística, científica ou filosófica;
4. fatores lingüísticos propriamente ditos, isto é, a estrutura e o funcionamento da linguagem que determinam nossa competência e nossa performance enquanto seres capazes de criar e compreender significações.

Esses fatores nos dizem por que existe linguagem e como ela funciona, mas não nos dizem o que é a linguagem. É a perspectiva fenomenológica que nos orienta para sabermos não só o que é a linguagem, mas também qual é seu papel fundamental no conhecimento:
  • a linguagem n ão é mecanismo psicomotor (os fatores 1 e 3 apresentam ascondições biológicas e psicológicas para haver linguagem, mas não qual é a natureza da experiência da palavra);
  • a linguagem não é simples relação binária entre signo e coisa, signo e idéia, mas é uma relação ternária, na qual os signos são símbolos que veiculam significações;
  • a linguagem não traduz pensamentos, mas participa ativamente da formação e formulação das idéias e dos valores; 
  •  a linguagem é uma forma de nossa experiência total de seres que vivem no mundo e com outros; é uma dimensão de nossa existência; 
  •  a linguagem, como a percepção e a imaginação, pode comprazer-se no já dado, já dito e já pensado, no instituído e estabelecido, ficando escrava dos preconceitos e das ideologias, pois, como disse Platão, ela pode ser remédio, veneno e máscara. Pode bloquear nosso conhecimento e pode produzir desconhecimento (mentira, desinformação). É, assim, nosso meio de acesso ao mundo, aos outros e à verdade, mas também o instrumento do engano, do falso e da mentira; 
  • a linguagem cria, interpreta e decifra significações, podendo fazê-lo miticamente ou logicamente, magicamente ou racionalmente, simbolicamente ou conceitualmente.
CHAUI, Marilena.  Convite à Filosofia. Ed. Ática, São Paulo, 2000.