segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

Tipos de Conhecimento


INTRODUÇÃO

Quando falamos em “conhecimento”, pensamos logo em “ciência”. De um modo geral, o conhecimento científico é considerado pela maioria das pessoas como sendo a verdade das coisas. Os meios de comunicação veiculam e reforçam essa espécie de preconceito favorável que temos em relação à ciência e que se chama cientificismo ou positivismo.

Proponho questionar essa ideia recebida e mostrar que há uma efetiva multiplicidade de saberes legítimos, dentre os quais a ciência. Podemos dizer que a especificidade do ser humano é ser capaz de tomar consciência de sua situação no mundo, buscando compreender onde e como vive, e tentar fazer alguma coisa em relação ao que descobre. Por isso, há diversos tipos ou níveis de conhecimento e é preciso perguntar quais são, como funcionam e como se relacionam com as ciências.
A distinção básica a ser feita é entre senso comum, filosofia e ciência. Começo com uma formulação mais simples, para depois aprofundarmos um pouco. O senso comum são as crenças e “fatos” que aceitamos, sem questionar, ao vivermos a vida cotidiana, fazendo as coisas funcionar, lidando com problemas elementares, mas sempre querendo que o todo faça algum sentido. São conhecimentos compartilhados que nos ajudam a viver. A filosofia começa quando nos espantamos com o que todo mundo acha normal, estranhamos as coisas banais e paramos para pensar, perguntando por suas causas. Essa tomada de consciência torna-se mais consistente e mais propriamente filosófica, quando relacionamos as questões que vivemos hoje com uma tradição de problemas elaborados por pensadores que viveram em outras épocas; o estudo rigoroso dessas questões constitui o que chamamos a história da filosofia ocidental. As ciências são conhecimentos específicos, sobre objetos e fenômenos determinados, adquiridos metodicamente. Temos aí um bom ponto de partida.
Vejamos algumas questões relativas a esses diferentes tipos de conhecimento, que nos ajudarão a elaborá-los numa perspectiva filosófica.

QUESTÕES



Para que serve o conhecimento?
Informação é conhecimento?
Qual a diferença entre informação e formação?
O que os meios de comunicação nos contam é conhecimento?
A gente só aprende na escola?
As matérias da escola resumem todos os tipos de conhecimento?
Toda opinião é verdadeira? Toda opinião é falsa?
Experiência de vida é conhecimento?
Todo mito é mentira?
Religião é conhecimento? E arte?
O conhecimento racional pode compreender o irracional?
Religião e filosofia são a mesma coisa? Qual a diferença?
Posso crer naquilo que não compreendo?
A filosofia é um tipo de literatura?
Pensar é diferente de conhecer?
O que distingue a filosofia de outros saberes?
É possível pensar em algo que não existe?
É possível ser, ao mesmo tempo, sábio e ignorante?
As questões filosóficas têm solução?
Se não resolvemos as questões definitivamente, para que serve conhecer?
Consciência de si é conhecimento?
Ser ou não ser, qual é mesmo a questão?
O conhecimento verdadeiro tem que ser evidente?
O que é evidência?
Se eu não sei alguma coisa e estou buscando saber, como vou saber que a encontrei, se não a conheço? Se eu a reconhecer, é porque já a conhecia, então não adquiri conhecimento?
Enfim, como é que eu sei que sei?
É possível conhecer o conhecimento? Saber que se sabe alguma coisa?
Saber que não sei alguma coisa é saber?
É possível um conhecimento que não seja científico?
A ciência é o único meio de alcançar a verdade?
A ciência é incompatível com a religião?
A ciência é capaz de substituir a religião?
A ciência acaba com o fanatismo religioso?
Matemática é conhecimento ou é só cálculo?
Conhecimento é mais experiência do que teoria?
O ser humano é capaz de ter um conhecimento científico de si mesmo?
O conhecimento científico é para sempre?
Uma teoria científica pode ser, ao mesmo tempo, verdadeira e provisória?
...

Atividade 1 - Acrescente novas questões a essa lista. Depois, tente agrupar as questões em blocos: por exemplo, um bloco sobre o senso comum, outro sobre filosofia, outro sobre ciência.

Dica - Veja na página do Centro de Referência Virtual do Professor:
  • CBC – Filosofia: 3.2. Tipos de conhecimento: a. a emergência da filosofia; b. a filosofia e outros saberes.
  • Orientações Pedagógicas – Médio – Filosofia: 17. A filosofia e outros saberes I – conhecimento comum e conhecimento científico e 18. A filosofia e outros saberes II – formas de racionalidade.

Atividade 2 - Sócrates diz na Apologia (diálogo escrito por Platão, séc. IV a.C.):
Só sei que nada sei.  O que significa isso? Essa ideia parece ser contraditória: o saber é afirmado e negado na mesma sentença; eu sei que não sei; eu sei e não sei, ao mesmo tempo? Da mesma maneira? Como resolver isso?

CRíTICA AO POSITIVISMO

O Positivismo é um tipo de cientificismo, ou seja, uma perspectiva que valoriza a ciência acima de tudo. Uma conseqüência dessa atitude é achar que mito, filosofia e ciência são incompatíveis e que é preciso “abandonar” os dois primeiros em função da terceira. Enquanto tendência filosófica, o Positivismo desenvolveu-se na Europa, principalmente, na segunda metade do séc. XIX, num contexto que é chamado de “segunda revolução industrial”. O sistema econômico-financeiro favoreceu de modo inédito a indústria controlada pela burguesia ascendente, principalmente na Inglaterra e na França. O sucesso econômico desses países, com o apoio dos governos, sustentou o chamado “colonialismo imperialista” europeu, que empreendeu a busca de novos territórios para a obtenção de matéria prima e a conquista de novos mercados. Esse processo contou de modo decisivo com as recentes descobertas científicas e suas aplicações técnicas na indústria, que suscitaram grande “progresso” material. Assim, o Positivismo deve ser visto como um amplo movimento cultural e filosófico, baseado na supervalorização da ciência e da técnica e num suposto “progresso” social. Seus principais pensadores são Comte, na França, Bentham, Stuart Mill e Spencer, na Inglaterra.
Auguste Comte, filósofo francês (1789-1857), publicou seu Curso de filosofia positiva em 1830/42 e o Discurso sobre o espírito positivo, em 1844, como introdução a um curso de astronomia popular dado gratuitamente aos trabalhadores, numa sala da prefeitura de Paris. NoDiscurso, ele fala da “lei dos três estados’ (o teológico, o metafísico e o positivo), que seriam estágios de compreensão, explicação e representação do mundo pelos quais passaria toda a humanidade, mas também cada indivíduo, em particular.
O estado teológico-fictício seria o mais primitivo, no qual explicamos o mundo através de seres ou agentes imaginários, supostamente dotados de vontade. Assim como a criança, os seres humanos reconhecem nos seres naturais a encarnação de espíritos com poderes mágicos. Seja no politeísmo, seja no monoteísmo, eles divinizam certas forças naturais com o objetivo de explicar os fenômenos; essas forças são vistas, então, como sobrenaturais. Mas a busca das causas, mesmo que provoque a criação de ilusões, é o impulso básico para o progresso da inteligência humana.
No estado metafísico-abstrato, conservamos o desejo de descobrir as causas, próprio do estado teológico, e antecipamos a necessidade de argumentação racional, própria do estado positivo. Os seres sobrenaturais são substituídos por abstrações ou entidades, como “a essência” ou “a matéria”, por exemplo. Com um espírito crítico, a atitude metafísica mais dissolve do que organiza, o que explicaria, por exemplo, o desaparecimento da cultura religiosa da Idade Média, com a destruição dos valores teológicos, que culminaria, no séc. XVIII, com o Iluminismo, ou seja, o triunfo das luzes da Razão.
O estado positivo-científico abre mão das causas absolutas (que explicariam “por quê” as coisas acontecem) e busca as leis parciais (que descreveriam “como” elas acontecem). A noção de lei deve substituir a noção de causa: podemos explicar a atração da matéria pela lei da gravitação universal, sem ter que dizer o que é a gravitação enquanto causa. As leis (que podem ser estáticas ou dinâmicas) caracterizam o próprio espírito positivo, que garante a ordem do mundo e da sociedade (dimensão estática) e seu progresso (dimensão dinâmica). O estado positivo é o termo fixo e definitivo, em que o espírito humano descansa e encontra a ciência. Tal como as sociedades, também os indivíduos evoluem segundo essa lei dos três estados, culminando com o reconhecimento do valor maior das ciências experimentais.
As principais ciências seriam a matemática, a astronomia, a física, a química, a biologia e a sociologia. A psicologia faz parte da biologia, o psiquismo não sendo nada mais do que um conjunto de funções cerebrais. A sociedade é um organismo cujas partes são heterogêneas, mas solidárias, com uma especialização precisa de funções, pensadas organicamente. A sociedade segue uma evolução de acordo com normas biológicas. A ordem se expressa na estática e o progresso constitui a dinâmica social. São expressões mais ou menos equivalentes, segundo Comte: “política positiva”, “filosofia social”, “teoria da evolução social”, “física social” e “sociologia”. Nessa perspectiva, algumas ideias tornam-se problemáticas ou perdem o sentido, tais como a noções de direito, do sujeito como individualidade, as ideias de liberdade de consciência e de soberania popular.
Os defensores do cientificismo pensam que as ciências naturais são a ciência por excelência. Elas conhecem os fatos através da experiência dos sentidos. Um tipo de pensamento típico do séc. XIX, o Positivismo tem como método não procurar as causas, não indagar pela essência, mas procurar as leis e as relações entre fenômenos, para conhecer os mecanismos do mundo. Em certo sentido, então, a ciência é uma sistematização do bom senso, segundo o qual seríamos espectadores de fenômenos exteriores, que se dão à nossa percepção sensível; fenômenos que não podemos modificar, mas a cujas leis devemos nos submeter. Não se reconhece a especificidade das ciências sociais por oposição às ciências naturais, mas busca-se o máximo de universalidade, na explicação dos fatos e suas relações. Podemos dizer que o Positivismo seria um “dogmatismo físico” e um “ceticismo metafísico”: porque, por um lado, ele afirma a objetividade do mundo físico, acima de tudo, estendendo suas regras para a sociedade, sem ressalvas, e, por outro lado, não se pronuncia sobre a natureza de objetos não perceptíveis pelas sensações.
Dica - “Dogmatismo” e “dogmático” vem do termo grego dógma, que quer dizer opinião. Atualmente, usamos esses termos para designar a atitude de alguém que aceita opiniões e adota valores, incondicionalmente, sem questionar. “Ceticismo” e “cético” vem do termo grego sképsis, que significa dúvida. Usamos esses termos para indicar a atitude oposta à do dogmático, ou seja, de alguém que duvida de tudo e que pensa que não é possível conhecer a realidade de verdade.
O termo “positivo”, na perspectiva positivista, designa e valoriza o real contra o ilusório, o útil contra o inútil, a segurança e a certeza contra a insegurança, o preciso por oposição ao vago, o relativo contra o absoluto. As opções metodológicas revelam-se, na verdade, opções por certos valores que guiam a atitude dos indivíduos. A corrente intelectual é ampliada a tal ponto e de tal modo que Comte acaba inventando uma “religião positivista”, puramente natural, racional, científica e exclusivamente humana; sem revelação, sem dimensão sobrenatural, baseada no conhecimento do mundo e no aperfeiçoamento moral da humanidade. A humanidade é o grande ser, ao qual deve servir todo ser humano. Apesar de contrário à teologia e à metafísica (consideradas ilusórias), e de ser crítico do catolicismo (considerado anti-social), o filósofo francês acaba por tomar a Igreja Católica como modelo, com seus santos padroeiros, anjos da guarda e almas amigas. Um lugar especial é reservado à sua musa inspiradora, Clotilde de Vaux, considerada como equivalente à Virgem-mãe...

Atividade 3 – Leia os textos de Comte abaixo e discuta as ideias centrais do Positivismo, a partir das seguintes questões:
  • A ciência, necessariamente, torna inúteis a religião e a filosofia?
  • Que objeções você levantaria ao paralelismo proposto entre religião-filosofia-ciência e infância-adolescência-idade adulta?
  • Quais as consequências de se reduzir a sociologia a um tipo de física ou de biologia? Numa sociedade pensada como “um organismo natural”, como são vistas as diferenças e os fatos novos?

“A filosofia teológica foi, durante a infância da Humanidade, a única adequada para sistematizar a sociedade, unicamente porque era então a fonte exclusiva de certa harmonia mental. Se, pois, o privilégio da coerência lógica passou, a partir de agora, ao espírito positivo, o que não pode ser seriamente contestado, cabe então reconhecer também nele o único princípio efetivo dessa grande comunhão intelectual. Esta vem a ser a base necessária de toda verdadeira associação humana (...)”. 
Discurso sobre o espírito positivo, 1ª. Parte, IV.

“Sem dúvida, a ciência e a teologia não estão no início em oposição aberta, posto que não se propõem as mesmas questões. Isto permitiu durante muito tempo o florescimento parcial do espírito positivo, apesar da ascendência geral do espírito teológico e, até mesmo, sob muitos aspectos, debaixo de sua tutela prévia. Mas, quando a positividade racional (...) começou a estender-se ao estudo direto da natureza, sobretudo por meio das teoria astronômica, tornou-se inevitável a colisão, embora latente”.
Discurso sobre o espírito positivo, 1ª. Parte, VI.

“Todos os seres vivos apresentam duas ordens de fenômenos essencialmente distintos, os relativos ao indivíduo e os concernentes à espécie, sobretudo quando esta é sociável. É principalmente em relação ao homem que esta distinção é fundamental. A última ordem de fenômenos é evidentemente mais complicada e mais particular do que a primeira, depende dela sem a influenciar. Daí duas grandes seções da física orgânica: a fisiologia propriamente dita e a física social, fundada na primeira”.
Curso de filosofia positiva, 2ª. Lição, IX.

No Brasil, o Positivismo de Comte e o Evolucionismo social de Spencer atraem a classe média urbana, com certo favorecimento da oligarquia cafeeira, no final do séc. XIX. O positivismo brasileiro funde a mentalidade cientificista, o evolucionismo social e idéias democrático-liberais norte-americanas, num ecletismo intelectual tipicamente nosso. No Rio de Janeiro, Luis Pereira Barreto defende a ciência associada à religião positiva, priorizando os aspectos reacionários do pensamento de Comte, numa tentativa de manter a ordem social, mais através de meios morais do que legais. Essa combinação gera o que é chamado de um “positivismo integral” ou ortodoxo, organizado por Miguel Lemos e Teixeira Mendes. Através do Apostolado Positivista no Brasil, esses líderes propagaram a religião da humanidade, alheios ao republicanismo democrático, defendendo a ideia de que as leis científicas do progresso se cumpririam necessariamente. O Positivismo no Brasil adquire uma grande complexidade cultural, com o surgimento de diferentes correntes, sob a influência de pensadores europeus com orientações filosóficas e políticas variadas: a ditadura do Apostolado, o comtismo ortodoxo, o Positivismo de Littré, o evolucionismo liberal-democrata de Spencer, etc.
A crítica ao Positivismo é fundamental para que possamos reconhecer a legitimidade dos diferentes tipos de saber – senso comum, mito, religião, filosofia, ciência, técnica, arte – cada um com suas características próprias, sua especificidade e sua autonomia. Só refletindo sobre suas diferenças, poderemos compreender suas relações.
Dica – Um livro de fácil leitura é o da Coleção Primeiros Passos: João Ribeiro Jr. O que é positivismo. Na coleção Os Pensadores, você encontra os textos fundamentais de Comte.

Atividade 4 - Leia o texto abaixo e explique o que o Positivismo compreende por “ordem” e “progresso”.

A Bandeira do Brasil foi projetada em 1889 por Raimundo Teixeira Mendes e Miguel Lemos, com desenho de Décio Vilares. Ela foi inspirada na bandeira do Império, que tinha sido desenhada pelo francês Debret. A expressão positivista “Ordem e Progresso”, que tomou o lugar da coroa imperial é de Benjamin Constant, que a sugeriu a Teixeira Mendes. O decreto republicano que aprovou sua adoção foi de autoria desse último, com o apoio de Constant e de Rui Barbosa. O projeto foi aprovado em 19 de novembro de 1889, através do decreto no.4. No dia 24 de novembro do mesmo ano, Teixeira Mendes publica no Diário Oficial uma exposição de motivos do projeto, que recebeu o nome de “Apreciação filosófica”.


A legenda original era mais extensa do que “Ordem e progresso”, e dizia “o amor por princípio, a ordem por base, o progresso por fim”. Nas palavras do autor: “A nova divisa significa que essa revolução não aboliu simplesmente a monarquia, que ela aspira a fundar uma pátria de verdadeiros irmãos, dando à Ordem e ao Progresso todas as garantias que a história nos demonstra serem necessárias a sua permanente harmonia”. A expressão comportaria duas dimensões: uma moral, “viver para outrem”, e outra estética, “cada coisa em seu devido lugar, para a perfeita orientação ética da vida social”. A organização social é pensada a partir do funcionalismo dos organismos biológicos e o progresso social como lei natural necessária. Haveria, ainda, a pretensão de convocar os cidadãos para uma arrancada concreta e irreversível em favor do “desenvolvimento”. A ordem deve indicar decisão e visão clara dos problemas, enquanto o progresso indica uma meta de ascensão para os homens de valor.
Consultado em 19/8/2010.

SENSO COMUM

As histórias contadas pelos mais velhos, os mitos, as crenças aceitas sem perguntas, as notícias que assistimos na televisão, as pregações religiosas na televisão, os preconceitos e os moralismos, os comportamentos copiados, os discursos políticos vazios, os acontecimentos sobre os quais lemos nos jornais, a infinidade de informações que encontramos na internet ... formam um conjunto de “conhecimentos” que, sem refletir, chamamos de “fatos”, aceitando-os como verdadeiros. É o que chamamos de “senso comum”, ou seja, conhecimentos que acreditamos que são compartilhados “por todo mundo”.
Todo mundo sabe que a terra é redonda.
Todo mundo sabe que chove a partir do fim de setembro.
Todo mundo sabe que chá de boldo é bom para ressaca.
Todo mundo sabe que é preciso tirar carteira de identidade.
Todo mundo sabe que ... será?
A lista é imensa. Podemos ainda incluir nesse grupo as receitas de bolo, as instruções de como usar equipamentos, boletins meteorológicos, notícias sobre o trânsito, alguns programas de rádio, alguns programas de televisão ...
O mais importante não é tanto o “quê”, mas o “como”; ou seja, o que define o senso comum não são tanto os conteúdos ou informações que consideramos verdadeiros ou certos, mas o fato de os aceitarmos como verdadeiros sem os questionarmos. É a atitude passiva ou mesmo “dogmática” que define esse nosso primeiro modo de viver ou de estar no mundo.
Em certa medida, é perfeitamente compreensível que seja assim. A vida social cotidiana não seria possível se toda comunicação devesse ser baseada em conhecimentos profundos e exatos de todas as coisas sobre as quais conversamos. É o caso da piada do chato que, toda vez que alguém pergunta “como ele vai”, responde dando uma descrição detalhada do seu estado de saúde, mostrando resultados de exames clínicos, raio x e tomografias. A praticidade da vida cotidiana exige que nos limitemos a representações rápidas ou superficiais das coisas, ou seja, a dimensão do conhecimento propriamente dito cede à função de comunicação ou operacionalidade do fazer e do agir. É o que poderíamos chamar de um primeiro nível da dimensão funcional ou instrumental da racionalidade humana.
Outra anedota: a do enfermeiro filósofo. O cirurgião, em plena operação, pede ao enfermeiro, “Passe-me o bisturi”. O enfermeiro pára e pergunta, “Como assim, bisturi? O que você quer dizer com “bisturi”? Vamos discutir essa questão...” E, enquanto isso, o paciente morre! Quer dizer, existe uma dimensão do conhecimento que tem mesmo que ser direta e denotativa, ou seja, um jeito de pensar e de falar, no qual uma palavra indica só uma coisa e pronto! Essa maneira de falar sobre as coisas expressa um modo de “conhecer” a realidade que nos permite resolver grande parte das demandas práticas da vida.
Onde está o problema? O problema está em achar que isso nos basta. Que esse nível “comum” de representações e ideias é suficiente para satisfazer todas as aspirações humanas; que a vida humana se reduz a isso, que nos basta esse tipo de conhecimento. Aos poucos vamos aprendendo que existem outros saberes que descolam do plano dogmático, sem, no entanto, perder de vista a dimensão prática do agir e do fazer, propiciando-nos vidas mais significativas.
O filósofo Gerd Bornheim fala do enraizamento existencial da descoberta da filosofia, no plano individual. Nós todos tendemos a aceitar as crenças e os valores socialmente compartilhados de modo “dogmático”. Mas, a partir de alguma “experiência negativa”, cada um de nós, em momentos e ritmos diferentes, teria a oportunidade de questionar as supostas verdades e a problematizar o que, antes, parecia seguro. Não se trata de um percurso necessário para todos, mas aqueles que o fazem transformam a experiência negativa em busca reflexiva. Um acidente de automóvel, uma doença inesperada, uma crise no casamento, a morte de um amigo... Qualquer acontecimento desse tipo pode suscitar uma ruptura na rede de significações que estamos acostumados a aceitar como “normal” e nos levar a questionar e a buscar explicações melhores e mais elaboradas para os acontecimentos da vida individual, para os problemas sociais ou mesmo para os fenômenos do universo.

Atividade 5 – Leia abaixo trechos do conto O elo partido e algumas passagens de um texto sobre o surgimento da atitude filosófica. Tente estabelecer relações entre eles.


“Subitamente, não sabia mais como se ata o nó da gravata. Era como se enfrentasse uma tarefa desconhecida, com que nunca tinha tido qualquer familiaridade. Recomeçou do princípio. Uma vez, outra vez – e nada. Suspirou com desânimo e olhou atento aquele pedaço de pano dependurado no seu pescoço. Vagarosamente, tentou dar a primeira volta – e de novo parou, o gesto sem sequência. Viu-se no espelho, rugas e suor na testa: a mão esquerda era a direita, a mão direita era a esquerda”. (...) “Numa noite em que se recolheu mais cedo, morto de sono. Fisicamente exausto, atirou-se pesadamente à cama e não conseguia deitar-se de modo cômodo, como toda noite. – Como é mesmo que eu durmo? – queria saber qual a posição que habitualmente tomava para dormir. A postura que usava no sono, insabida”. (...) “Até que associou o mal-estar com a primeira vez que não soubera dar o nó na gravata. Alguma coisa de comum, um escondido traço unia um episódio ao outro”. (...) “A longa viagem ia começar, sem rumo, sem susto, para levar a lugar nenhum. Uma mulher acabou de entrar. – Quem sou eu? – ele perguntou num último esforço. E, para sempre dócil, conquistado, nem ao menos quis saber seu nome”. 
Otto Lara Resende. O elo partido.

“A experiência negativa pode dar-se num comportamento de passividade existencial, na qual o sentido da realidade se esvai como que a despeito do homem, independentemente de seu querer: ele sofre a perda do mundo. Verifica-se uma espécie depassio (submissão), na qual o indivíduo torna-se apático e até mesmo abúlico (sem vontade) com uma intensidade maior ou menor. Todo o comportamento do homem tende a perder a sua razão de ser, e a sua atividade torna-se absurda na medida em que a realidade perde sentido”. (...) “Se através da experiência negativa se verifica uma perda do mundo, esta mesma experiência possibilita a abertura do horizonte para uma reconquista do mundo. Tal reconquista, por sua vez, só é possível na medida em que se ultrapassar a experiência da negatividade” (...) “Se isto assim é, podemos compreender o comportamento inicial do filosofar dentro de uma perspectiva dialética. Sua primeira etapa consistiria na afirmação dogmática da realidade; em um segundo momento, encontramos a negação da afirmação primeira, retraindo-se o homem pela experiência negativa; e, finalmente, o processo de negação da negação, isto é, a mudança reafirmadora da realidade”. (...) “Dentro dessa problemática, o paradoxo da situação humana reside no fato de que o homem, para poder entrar realmente no mundo, precisa primeiro sair dele”. 
Gerd Bornheim. Introdução ao filosofar.

Os mitos são um tipo de conhecimento que dá sentido à vida cotidiana, sem que seja totalmente submetido à prática ou ao imediato. Tomemos um exemplo das narrativas míticas gregas. No Mito das raças contado pelo poeta Hesíodo (séc. VII a.C.), o ser humano aparece como um ser marcado, alternadamente, tanto pela justiça, como pela desmedida, seja no uso do poder, seja no âmbito da guerra. Os homens da raça de ouro viviam como os deuses clarividentes, sem preocupações ou misérias, não envelheciam, colhiam os frutos que brotavam espontaneamente da terra e morriam durante o sono. Dessa situação eles passam, gradativamente, pelas raças de prata, de bronze e, agora, vivem na raça de ferro, na qual têm que trabalhar, com doenças e sofrimentos, os filhos não se assemelham aos pais, nem os respeitam, não há amizade confiável, não há um conhecimento que seja referência para todos; com a lei nas mãos, um saqueia a cidade do outro, não há mais respeito ou temor.
Temos, aqui, um tipo de conhecimento funcional, mas que é também implicitamente reflexivo. É como se a narrativa trouxesse dentro dela uma teoria sobre o que é o ser humano, uma antropologia. Para enfrentar a situação da raça de ferro, que, na verdade, pode ser vista como a “condição humana”, na qual a realidade é conflitante e opaca, a consciência de si e a busca de conhecimento são recursos fundamentais. O ser humano convive com as forças da natureza, mas não as conhece “naturalmente”. A precariedade (natural) do ser humano acaba por se revelar uma espécie de riqueza (cultural): porque ele nasce sem nada (nu e indefeso) e não tem nada, ele é obrigado a fabricar tudo aquilo de que precisa para poder sobreviver e, se possível, viver bem. O acesso ao fogo (roubado por Prometeu) e o aprendizado da técnica de usá-lo fazem do humano um ser capaz de enfrentar problemas, buscar, pesquisar e “conhecer”. Conhecimento é, então, compreendido como saber viver, ou seja, “saber fazer” para “saber viver”, dimensão essencial da humanidade do homem.

Dicas - O mito das raças faz parte do poema Os trabalhos e os dias, do poeta grego antigo Hesíodo. Tanto o mito das raças como o mito de Prometeu fazem parte do que chamamos “mitos antropogônicos”, ou seja, mitos que tratam da condição humana no mundo.
  • Veja o Roteiro de Atividade 2. Natureza e Cultura II – O mito de Prometeu, no Centro de Referência Virtual do Professor
  • Pesquise “Prometeu” na internet. Veja que há diferenças já entre as primeiras versões desse mito, feitas pelos gregos antigos (Hesíodo, Ésquilo, Protágoras). Ao longo dos séculos o mito antigo suscita outras versões, elaboradas pelos escritores ocidentais (Fernando Pessoa, Machado de Assis, por exemplo). Fala-se até sobre Frankenstein como o Prometeu moderno. Por quê?
Se nos descolarmos um pouco do imediato do cotidiano e pensarmos nas comunidades humanas em geral, nas sociedades e culturas tal como se constituíram ao longo da história, vemos que trazemos conosco, mais ou menos conscientemente, uma memória coletiva, que foi sendo elaborada e preservada ao longo de séculos ou mesmo milênios. Esses saberes preservados são valiosos e podem ser tanto conhecimentos passivamente aceitos ou saberes ativamente recuperados. Tudo depende da nossa atitude.
Assim, podemos dizer que, sim, partimos de uma base de conhecimentos compartilhados, para funcionar na vida. Mas, para podermos pensar as coisas mais importantes e apreender significações maiores, é preciso certa distância da prática, um momento de parada e tempo para o diálogo e a reflexão. Chegamos ao limiar entre conhecimento comum e filosofia.

FILOSOFIA


Podemos dizer que a filosofia, enquanto diálogo crítico permanente, se constitui a partir dos saberes aos quais se opõe.
Filosofia não é mito, não é religião, não é ciência.

Filosofia não é mito

Nos relatos míticos, as forças da natureza e as práticas humanas são “explicadas” como sendo obras de divindades. Filosofia é a problematização daquilo que o mito pressupõe. Quando os mitos começam a ser objeto de dúvida, sentimos necessidade um outro tipo de “explicação”, e começamos a perguntar como é mesmo que as coisas funcionam, duvidando das histórias que sempre nos contaram. Na Grécia antiga, essa ruptura do registro do mito abre o caminho para diferentes tipos de racionalidade: o discurso jurídico, as matemáticas, a pesquisa médica, a historiografia e também para a filosofia. Cada um desses discursos propõe questões próprias:
Se as ações humanas não são causadas por forças divinas, quem é responsável pelos crimes cometidos?
Aos poucos descobrimos que a natureza é estruturada por uma ordem que pode ser representada em números e relações numéricas.
Na análise e no tratamento das doenças, o funcionamento do corpo passa a ser compreendido a partir de uma lógica própria, indicando uma especificidade da relação entre corpo e alma, nos seres humanos.
As guerras e outros eventos políticos podem ser analisados segundo uma lógica puramente humana de interesse e poder.
O universo é regido por princípios que conferem unidade à multiplicidade dos fenômenos, assim como articulam movimento (transformação) e repouso (estabilidade).

Atividade 6 – Leia o texto abaixo e responda: qual o modo mais correto de interpretarmos os mitos?Um mito é um modo de pensar através de imagens. A questão de sua interpretação suscita problemas interessantes. Um mito não é uma alegoria. Numa alegoria, a imagem se deixa traduzir de modo “unívoco”. Já a interpretação do mito é relativamente aberta e permite certa “plurivocidade” de sentidos. Leia o que diz o filósofo francês Paul Ricoeur sobre isso:

“A alegoria é sempre suscetível de ser traduzida em um texto inteligível por si mesmo; uma vez que esse texto for decifrado, a alegoria cai como uma roupa inútil. O mito, ao contrário, tem um modo de revelar que é irredutível a qualquer tradução de uma linguagem cifrada em uma linguagem clara; ele significa aquilo que diz”.
Paul Ricoeur. Finitude e culpabilidade.

Filosofia não é religião

A religião parte de pressupostos aceitos pela fé. A filosofia não. Tudo, em filosofia, tem que ser estabelecido argumentativamente, não pode haver dogmas ou tabus. Tudo deve poder ser questionado e discutido. Mas a atitude religiosa não é incompatível com a atitude filosófica, mesmo que sejam bem diferentes. Posso aceitar afetivamente certos princípios teológicos ou doutrinas religiosas, mesmo que não possa sustentá-los ou justificá-los argumentativamente. Já em filosofia, a regra é que a adesão seja racional, consciente, explícita, deliberada, argumentada e passível de ser criticada a qualquer momento.

Atividade 7 - No santuário de Delfos, na Grécia antiga, havia um templo do deus Apolo onde estava escrita uma máxima que é considerada uma das primeiras orientações da filosofia ocidental: conhece-te a ti mesmo!Discuta com seus colegas: Quem seria esse “si mesmo”, objeto do conhecimento? O ser humano em geral, o grupo ao qual pertenço (minha cidade, meu país) ou o indivíduo (cada ser humano, em particular)? Que tipo de conhecimento seria esse? Positivo? Negativo? Se isso é filosofia, como se diferencia da religião? A busca do conhecimento de si se confunde com as ciências humanas? Ou com a psicanálise?E a auto-ajuda? Se todos esses tipos de conhecimento prescrevem o auto-conhecimento, todos são filosóficos?

Atividade 8 - Alguns dos primeiros filósofos criticam a tendência humana de projetar sobre os deuses características que são tipicamente humanas (Xenófanes, Heráclito, etc.). Sexto Empírico (séc.II d.C.) relata que Crítias foi um filósofo polêmico que criticava, de modo surpreendente para sua época (séc. V a.C.), a idéia mesma de se acreditar em um deus.
Leia o texto abaixo, discuta, tome posição e argumente contra ou a favor das seguintes ideias:
  • Os deuses foram inventados pelos seres humanos para controlar sua falta de limites e de medida.
  • Não podemos duvidar da existência dos deuses, porque isso é uma ofensa imperdoável.
  • Refletir sobre o significado da relação entre homens e deuses não implica, necessariamente, em recusar a existência dos últimos.

“Também Crítias, um dos que exerceram a tirania em Atenas, parece pertencer ao grupo dos ateus, ao dizer que os antigos legisladores conceberam a divindade como uma determinada entidade que observa as boas e más ações dos homens, a fim de que ninguém cometesse, às ocultas, uma injustiça para com o próximo, precavendo-se de um castigo por parte dos deuses. Na sua obra, a afirmação é a seguinte:
“Houve um tempo em que a vida humana era desordenada e serva de uma força selvagem, quando nem existia nenhuma recompensa para os indivíduos honestos, nem havia castigo para os maus. E parece-me que, em seguida, os homens instituíram leis punitivas a fim de que a justiça fosse soberana (de todos igualmente) e que fizesse da insolência uma escrava. Se alguém cometesse uma falta seria penalizado. Em seguida, uma vez que as leis os impediam de praticar manifestos atos de violência e eles os praticavam às ocultas, parece-me que nesta altura (pela primeira vez) um certo homem, ousado e sábio na maneira de pensar, inventou o receio (dos deuses) para os mortais, para que os que agem mal tivessem receio de fazer ou dizer ou pensar (algo) às ocultas. Por isso, introduziu o divino: “Há uma potestade (divindade) florescente, com vida indestrutível, que, com o espírito, ouve e vê, e, com suma inteligência, vigia estas ações, dotada ela própria de uma natureza divina. Ouvirá tudo o que se disser entre os mortais e poderá ver tudo o que é feito. Se, em silêncio, planejares algum mal, isso não passará despercebido aos deuses. A inteligência na divindade atinge um grau supremo”.  Fazendo essa afirmação, introduziu a mais agradável das doutrinas e encobriu a verdade com um discurso falso. Defendia que os deuses habitavam num lugar que, só de o mencionar, assustava imenso os homens. Sabia que daí partiam os receios para os mortais e os consolos para sua vida desditosa, vindos da esfera celeste, onde via existirem relâmpagos e terríveis estrondos de trovão e o estrelado corpo do céu, obra admiravelmente variegada do sábio artífice, o tempo. Daqui avança a massa incandescente da estrela e a tempestade de chuva sai em direção à terra. Em tais medos envolveu os homens, pelos quais (ele) integrou bem a divindade no discurso e num local conveniente; e com as leis destruiu a ausência de leis. E um pouco adiante acrescentou: Penso que foi desta maneira que alguém, pela primeira vez, persuadiu os mortais a pensarem que existia uma raça de deuses”.
Sexto Empírico. Contra os matemáticos, 9, 54. Crítias DK88B25.

Filosofia não é ciência

Filosofia já foi sinônimo de ciência. Na antiguidade, por exemplo, Platão oscilava entre os termos intelecção (nóesis), ciência (epistéme), filosofia e dialética, para se referir ao conhecimento propriamente filosófico, dependendo do problema que estivesse tratando num determinado diálogo. Ao longo dos séculos, os saberes foram se destacando e se afirmando autonomamente. A matemática, a medicina, o pensamento jurídico foram os primeiros. Ao longo da Idade Média, a filosofia foi se diferenciando da teologia. Com o mundo moderno – Renascimento, passagem do Feudalismo para o Capitalismo, Mercantilismo, etc. – ocorre o que ficou conhecido como a Revolução científica moderna. A física se separa da filosofia e levanta problemas novos; depois vem a química e a biologia; na sequência, a história e outras ciências humanas. Entre a ciência moderna (a partir do séc. XVII) e a ciência contemporânea (da segunda metade do séc. XIX para cá), os problemas filosóficos mudaram.

CIÊNCIA



De Galileu (1564-1642) a Kant, passando por Descartes a perspectiva filosófica chamada de “metafísica” sofre golpes que a abalam profundamente e que suscitam diversas posições intermediárias entre filosofia e ciência. No início deste texto, apresentamos e discutimos uma formulação contemporânea extrema, o Positivismo, que pretende suprimir a religião e a filosofia em nome de uma suposta superioridade da ciência. Mas podemos dizer que a ciência contemporânea, em geral, estabelece um bom diálogo com a filosofia. Nesse diálogo, tanto os filósofos reconhecem que precisam das ciências para alimentar e orientar suas reflexões, como os cientistas são cada vez mais capazes de fazerem a filosofia de suas próprias ciências.
O termo “metafísica” é, na verdade, um acidente editorial: refere-se, inicialmente, dentre os livros de Aristóteles, àqueles que vinham depois dos livros que estudavam a natureza (física), numa das primeiras edições de suas obras. Mas como seus escritos tratam dos princípios primeiros de toda a realidade e dos conhecimentos primeiros de todas as coisas, princípios aos quais não temos acesso com a percepção sensível, ou seja, que estão numa dimensão da realidade que não coincide com as coisas que percebemos diretamente, logo o termo passou a se referir àquilo que estaria “além da natureza”. Se a ciência tenta explicar seres e fenômenos na natureza, a filosofia (pensada estritamente como “metafísica” ou não) seria aquela tentativa de explicar as explicações das ciências, o que faria com que ela alcançasse níveis cada vez mais abstratos de compreensão da realidade.

Atividade 9 - Leia o início do texto Metafísica, de Aristóteles (séc. IV a.C.) e responda: Qual a relação entre percepção sensível (visão) e conhecimento (ciência)?

“Todos os homens têm, por natureza, desejo de conhecer: uma prova disso é o prazer das sensações, pois, fora até da sua utilidade, elas nos agradam por si mesmas e, mais que todas as outras, as visuais. Com efeito, não só para agir, mas até quando não nos propomos operar coisa alguma, preferimos, por assim dizer, a vista às demais. A razão é que ela é, de todos os sentidos, o que melhor nos faz conhecer as coisas e mais diferenças nos descobre” (...) “Os outros [animais] vivem, portanto, de imagens e recordações, e de experiência pouco possuem. Mas a espécie humana [vive] também de técnica e de raciocínios. É da memória que deriva aos homens a experiência, pois as recordações repetidas da mesma coisa produzem o efeito duma única experiência, e a experiência quase se parece com a ciência e a técnica. Na realidade, porém, a ciência e a técnica vêm aos homens por intermédio da experiência, porque a experiência, como afirma Pólos, e bem, criou a técnica, e a inexperiência, o acaso. E a técnica aparece quando, de um complexo de noções experimentadas, se exprime um único juízo universal dos [casos] semelhantes. Com efeito, ter a noção de que a Cálias, atingido de tal doença, tal remédio deu alívio, e a Sócrates também, e, da mesma maneira, a outros tomados singularmente, é [próprio] da experiência; mas julgar que tenha aliviado a todos os semelhantes, determinados segundo uma única espécie, atingidos de tal doença, como os fleumáticos, os biliosos ou os incomodados por febre ardente, isso é [próprio] da técnica.” 
Aristóteles. Metafísica A, I.

A filosofia é abrangente, sintética e integradora dos diversos tipos de conhecimento. A ciência é particularizante, analítica e tende a se especializar em objetos cada vez mais delimitados. Qualquer problema pode ser abordado filosoficamente. Os objetos da ciência devem ser elaborados ou construídos, conforme cada ciência específica.

A revolução científica moderna

O advento da ciência moderna é considerado um dos marcos da história da civilização ocidental. A partir do séc. XVII, surgem a astronomia de Copérnico e a física de Galileu, que inauguram um novo tipo de racionalidade, com uma utilização da matemática que passa a estudar a natureza em termos de relações quantificáveis.
Ocorre uma ruptura com o pensamento antigo-medieval, que era tipicamente representado pela visão aristotélica: o centro do universo é a terra, o universo é finito, separado em duas dimensões; a primeira é a celeste ou das estrelas fixas, perfeita e eterna; a segunda é a dimensão sublunar, que se encontra entre a órbita da lua e a superfície da terra, onde os seres nascem e morrem, submetidos a uma variedade de movimentos ou transformações.
Galileu tornou-se um marco da perspectiva moderna, ao apontar uma luneta para o céu e observar o universo buscando leis matemáticas que explicassem sua regularidade, numa visão mecanicista: sem causas exteriores, ditas finais, ou divinas, num mundo onde as regras de funcionamento são as mesmas em todos os planos. Céu e terra são unificados pelas mesmas leis e, consequentemente, devem ser explicados pelas mesmas teorias, ou seja, pelos cálculos de que os homens forem capazes. Não há mais “qualidades” naturais que explicam os fenômenos segundo suas determinações essenciais, mas leis e “quantidades” que se aplicam indiferentemente aos corpos, pensados agora como mecanismos em movimento.

Dica – Sobre a passagem do mundo antigo ao mundo moderno, veja a obra fundamental de Alexandre Koyré. Do mundo fechado ao universo infinito.

Atividade 10 - Leia os textos abaixo e responda à questão: Qual é ponto central da leitura crítica que Kant (explicado por Rubem Alves) faz da revolução científica protagonizada por Galileu?

“Quando Galileu deixou suas esferas rolar sobre a superfície oblíqua com um peso por ele mesmo escolhido, ou quando Torricelli deixou o ar carregar um peso de antemão pensado como igual ao de uma coluna de água conhecida por ele, ou quando ainda mais tarde Stahl transformou metais em cal e este de novo em metal, retirando-lhes ou restituindo-lhes algo: isso foi uma revelação para todos os pesquisadores da natureza. Deram-se conta de que a razão só compreende o que ela mesmo produz segundo seu projeto, que ela teria que ir à frente com princípios dos seus juízos segundo leis constantes e obrigar a natureza a responder às suas perguntas, mas sem se deixar conduzir por ela como se estive presa a um laço;” (...) “E assim até mesmo a física deve a tão vantajosa revolução na sua maneira de pensar apenas à ideia de procurar na natureza (não lhe imputar), segundo o que a própria razão coloca nela”.
Kant. Prefácio à 2ª. edição da Crítica da razão pura XIII-XIV.

“O livro da natureza está escrito em caracteres matemáticos” (Galileu. Il Saggiatore / Experimentador, 1623). (...) “Onde se encontram os caracteres matemáticos a que Galileu se refere? Podemos dizer com toda certeza: não é a observação que os oferece. De fato, não foi pela observação que a visão matemática da natureza surgiu. Ao contrário, foi da interioridade da razão que surgiu a suspeita de que, talvez, a matemática fosse a chave para decifrar o enigma e fazer a natureza falar. A natureza sentida e observada pelo corpo tem de ser colocada em segundo plano, como texto enigmático. O que este texto enigmático realmente diz deverá ser encontrado numa linguagem que só a razão conhece. E sob a imensa variedade da natureza, tal como percebida pelo corpo, a matemática nos revela uma paisagem lunar em que cores, sons, gostos, sensações táteis se vão, permitindo, entretanto, o aparecimento de leis eternas, objetivo da busca científica. Liquidado o corpo como meio para a compreensão da natureza, impõe-se a razão matemática – sem sangue e sem corpo, é bem verdade – mas universal e eterna”. 
Rubens Alves. Introdução à filosofia da ciência.

Ciência contemporânea

Tendo passado pela crise da Razão, que suscitou a tomada de consciência de que existem múltiplas racionalidades, a ciência é levada a fazer uma reflexão filosófica sobre suas possibilidades e seus próprios limites: Qual o significado do erro em ciência? Qual a relação entre saber e poder? Qual o valor do conhecimento científico para a comunidade humana?

Nesse contexto, alguns tópicos são fundamentais em uma filosofia da ciência do nosso tempo:
  • Uma reflexão sobre método, que trate criticamente das teorias enquanto hipóteses, que questione o valor da experimentação, que valorize a relação entre a imaginação criativa e a elaboração de teorias, que problematize os critérios de verificabilidade e de objetividade.
  • Discutir a relação entre as teorias científicas e o horizonte histórico e cultural no qual são formuladas; discutir o que são os paradigmas, tomar consciência do fato de que esses modelos de pensamento entram em crise de tempos em tempos, e que o desenvolvimento teórico e científico se dá por rupturas, não necessariamente em um progresso linear óbvio. Ver Thomas Kuhn.
  • O princípio de refutabilidade ou de falseabilidade, ou seja, o reconhecimento de que a ciência progride na medida em que reconhece que é falível, não, super-poderosa; é preciso tomar consciência da significação do erro. Ver Karl Popper, abaixo.
  • A discussão sobre os interesses do conhecimento, sobre a não-neutralidade da ciência, da relação entre conhecimento, poder e valores. Ver Habermas.
  • A consciência dos limites dos recursos naturais; construir uma consciência ecológica, entre a pesquisa científica, a melhoria das condições de vida das populações e os parâmetros éticos que orientem a ciência e a tecnologia.

Destaco um desses temas para aprofundarmos um pouco mais:

A refutabilidade do conhecimento científico

Karl Popper, filósofo austríaco (1902-1994), recusa a oposição que estruturou a ciência moderna (séc. XVII) entre o racionalismo radical (um fundamento racional remete a outro), e o empirismo (a passagem não justificada do particular para o universal). Ele recusa, também, tanto o ceticismo (não há como decidir sobre a verdade da ciência), como o relativismo (uma explicação científica equivale à outra).
Sua originalidade consiste em propor que o pensamento racional, para ser crítico, deve partir do reconhecimento de seu fracasso, ou seja, de sua falibilidade. Uma ideia totalmente contrária ao nosso senso comum (segundo o qual a ciência progride na medida em que é bem sucedida, ou seja, em que vê suas teorias confirmadas pela sua aplicabilidade – novas medicações e novas curas para doenças, novas tecnologias, etc.). Para Popper, é impossível impedir o erro, mas não é impossível compreendê-lo, o que nos abre uma via de acesso para estabelecer que uma teoria científica seja falsa, mesmo que não possamos dizer o mesmo sobre sua verdade. As teorias podem, então, ser agrupadas entre as falsas e aquelas cuja falsidade ainda não foi provada.

Algumas consequências importantes resultam dessas ideias sobre a ciência:
  • A irrefutabilidade não é sinal de superioridade.
  • Uma teoria audaciosa é preferível, em relação a uma mais modesta, porque ela pode nos proporcionar maior aprendizado.
  • Não queremos proteger nossas teorias de todo ataque, pelo contrário, a refutação é uma espécie de sucesso.
  • Nenhuma teoria está definitivamente estabelecida, toda teoria é uma hipótese.
  • A ciência não é a posse da verdade, mas sua busca.
  • O mundo, tal como a ciência busca conhecê-lo, está em permanente transformação.
Nesse espírito, o ambiente intelectual mais favorável à ciência é um racionalismo anti-autoritário, pluralista e crítico. No qual a pesquisa pode partir de qualquer oportunidade, da leitura de um jornal, de um palpite casual ou da observação da natureza. Mas toda ideia ou hipótese explicativa deve poder ser livremente submetida à prova. Essa prova crítica ou tentativa de refutação pode ser feita através da busca de coerência, da confirmação empírica ou da extração de consequências contraditórias ou não desejáveis.

Atividade 11 - Leia o texto abaixo e responda a questão: Quais os pontos comuns entre o que dizem Popper e Einstein?
O que fica claro é que o erro não é a exceção, mas a norma. O ser humano é estruturalmente falível e é enquanto tal que ele se torna sujeito do conhecimento.

“Na realidade, é todo o nosso sistema de conjecturas que deve ser provado ou refutado pela experiência. Nenhuma dessas suposições pode ser isolada para ser examinada separadamente. No caso dos planetas que se movem em volta do sol, vemos que o sistema da mecânica (clássica, newtoniana) é notavelmente operacional. Podemos, entretanto, imaginar um outro sistema, baseado em suposições diferentes, que seja igualmente operacional. Os conceitos físicos são criações livres da mente humana e não são, como poderíamos crer, apenas determinados pelo mundo exterior. No esforço que fazemos para compreender o mundo, parecemos um pouco com o homem que tenta compreender o mecanismo de um relógio fechado. Ele vê o mostrador e os ponteiros em movimento, ouve o tic tac, mas não tem como abrir a caixa. Se for engenhoso, poderá formar alguma imagem do mecanismo, que tornará responsável por tudo o que observa, mas nunca terá certeza que sua imagem é a única capaz de explicar suas observações. Ele nunca poderá comparar sua imagem com o mecanismo real, e não é capaz sequer de representar a possibilidade ou a significação de tal comparação. Mas o pesquisador certamente acredita que, à medida que seus conhecimentos crescem, sua imagem da realidade se torna cada vez mais simples e explicará domínios cada vez mais amplos de suas impressões sensíveis. Ele poderá também acreditar na existência de um limite ideal do conhecimento que a mente humana pode atingir e poderá chamar esse limite ideal de verdade objetiva.
Albert Einstein. A evolução das ideias em física.

Termino, citando dois fragmentos do filósofo grego Xenófanes (séc. VI a.C.), que é também citado por Popper, no Prefácio de 1968 à 3ª. edição alemã do seu livro A Lógica da pesquisa científica.

“Não, de início, os deuses não desvendaram tudo aos mortais;
mas, com o tempo, procurando, estes descobriram o melhor”.
Estobeu. Éclogas, I, VIII, 2. Xenófanes DK21B18.

“Não, nunca houve, nem nunca haverá
um homem que tenha o conhecimento claro
sobre os deuses e sobre as coisas de que falo;
pois, ainda que ele acontecesse dizer a verdade exata,
ele próprio não saberia disso;
pois tudo é conjectura”.
Sexto Empírico. Contra os matemáticos, VII, 49, 110. Xenófanes DK21B34.


BIBLIOGRAFIA
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BORNHEIM, Gerd. Introdução ao filosofar. Rio de Janeiro: Ed. Globo, 1975.
COMTE, Auguste. Curso de filosofia positiva. Discurso sobre o espírito positivo. Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo. Catecismo positivista. Trad. J. A. Giannotti; M. Lemos. São Paulo: Abril Cultral, 1978. (Coleção Os Pensadores).
EINSTEIN, Albert. L´évolution des idées en physique. Paris: Payot, 1963.
HABERMAS, Jurgen. Conhecimento e interesse. Trad. M. Tragtenberg. In:  BENJAMIN. HORKHEIMER. ADORNO. HABERMAS. Textos escolhidos. Trad. Tragtenberg et al. São Paulo: Abril Cultural, 1980. (Coleção Os Pensadores).
HESÍODO, Os trabalhos e os dias. Trad. Mary Lafer. São Paulo: Iluminuras, 1991.
KOYRÉ, Alexandre. Do mundo fechado ao universo infinito. (1957) Trad. D. Garschagen. Rio de Janeiro: Ed. Forense Universitária, 2006.
KUHN, Thomas. A estrutura das revoluções científicas. Trad. B. Boeira; N. Boeira. São Paulo: Ed. Perspectiva, 2006.
OS PRESOCRÁTICOSTestemunhos, doxografia e comentários.Trad. Cavalcante de Souza et al. São Paulo: Abril Cultural, 1973. (Coleção Os Pensadores).
POPPER, Karl. A lógica da pesquisa científica. Trad. L. Hegenberg; O. S. Mota. São Paulo: Cultrix, 1975.
RESENDE. Otto Lara. O elo partido. In: MORICONI, I. (Org.) Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Objetiva, 2000, p.315-324.
RIBEIRO JR., João. O que é positivismo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
RICOEUR, Paul. Philosophie de la volonté II. Finitude et culpabilité. (1960) Paris: Aubier, 1988.
SOFISTAS. Testemunhos e fragmentos. Trad. A. Souza; M. J. Pinto. Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 2005.



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Currículo Básico Comum - Filosofia do Ensino Médio
Autor(a): Marcelo P. Marques
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