segunda-feira, 7 de fevereiro de 2011

Indivíduo e Comunidade 3ºano


INTRODUÇÃO:


Os termos “indivíduo” e “comunidade” parecem possuir significados opostos. Por um lado, “indivíduo” quer dizer “o que não pode ser dividido”, estando associado, portanto, às noções de “unicidade”, “unidade”, “propriedade”, “particularidade”, ou seja, a tudo aquilo que não é partilhado. Por outro lado, “comunidade” se refere àquilo que é “comum”, àquilo que é de todos (sem ser de ninguém em particular), àquilo que concerne a todos. Logo, a palavra “comunidade” está relacionada à vida em comum, à existência compartilhada, ao passo que “indivíduo” diz respeito à autonomia e à independência.
Porém, esse contraste terminológico não deve fazer esquecer que, no que concerne à existência humana, não é possível falar de indivíduo sem referir-se à comunidade, e vice-versa. Isso significa que o ser humano encontra-se sempre inserido em uma comunidade. É preciso, contudo, ter em mente que essa inserção não é idêntica àquela que identificamos em outros animais, como as abelhas ou as formigas. No caso do ser humano, a vida em comunidade não resulta meramente de uma tendência instintiva (embora tenha relação com as necessidades). Além disso, ela está ligada àquilo que chamamos de cultura (ver Orientação Pedagógica: “Natureza e Cultura I: Problematizando”), o que permite pensar em uma série de diferenças para com a vida animal. Por exemplo, a presença da linguagem ou, ainda, a existência de um conjunto de princípios que orientam o comportamento (a moral e as leis). Tendo isso em mente, podemos perceber que a existência em comunidade (e poderíamos também dizer: a vida em sociedade) é de importância fundamental para a constituição de quem nós somos como indivíduos. Por esse motivo, o que entendemos por nossa “individualidade” está em estreita dependência da vida em comunidade. Os animais, nesse sentido, não possuem “individualidade” (a não ser que tomemos este termo em uma acepção biológica e, nesse caso, são indivíduos de uma espécie). Logo, falar de uma existência individual absolutamente autônoma e independente para o homem é uma abstração que não encontra correspondência na realidade.
Retomemos, por um instante, a questão da linguagem. A faculdade cognitiva que nos capacita para o aprendizado da linguagem é um elemento constitutivo de nossa natureza, mas essa capacidade apenas é desenvolvida quando fazemos parte de uma comunidade lingüística. O uso das palavras e a compreensão de seu significado advêm, portanto, da socialização. Uma criança isolada da comunidade humana não irá falar espontaneamente. Mas o que devemos observar é que sem o desenvolvimento da linguagem uma criança não é capaz de construir sua identidade, não é capaz de se reconhecer como um indivíduo diferente dos demais e do mundo que a cerca.
Essa abordagem do problema, que poderíamos chamar, grosso modo, de psicológica, não é, contudo, aquela que iremos privilegiar. Nossa escolha será a de tratar a questão em uma perspectiva social e política. Essa opção se justifica pelo fato de que um dos aspectos mais importantes da relação entre indivíduo e comunidade é precisamente aquele referente às relações de poder (para uma melhor compreensão da natureza dessas relações, ver Orientação Pedagógica: “Indivíduo e Comunidade I: Conflito”). Um pouco mais acima, falamos de princípios que regem a conduta individual dos membros de uma sociedade. Esses princípios podem ser ou morais ou legais. A esses devemos acrescentar os princípios políticos, os quais, em última instância, têm o mesmo objetivo dos dois outros, vale dizer, assegurar a conservação da associação política e o bem-estar de seus membros.
De maneira muito esquemática, podemos dizer que os princípios morais constituem um conjunto de preceitos para a conduta que exigem a adesão consciente e voluntária do agente. Quanto à legalidade e aos princípios jurídicos, estamos aí no campo das leis. Estas também regulam o comportamento dos indivíduos, mas impõem uma obrigação que poderíamos chamar de “externa”. Sendo assim, seu princípio de validade dispensa a adesão interna. Quando falamos de princípios políticos, porém, estamos nos referindo aos fundamentos da vida em comum. E são esses fundamentos que permitem compreender a natureza do vínculo entre indivíduo e comunidade. Na história da filosofia vamos encontrar diferentes maneiras de definir esse laço. Em que pesem as inevitáveis lacunas, vamos selecionar alguns autores da tradição filosófica que podem, de alguma maneira, ajudar a esclarecer a questão.

1- ANTIGÜIDADE.


Platão (428/348 a.C.)
Há pelo menos duas maneiras de abordar o problema da relação entre indivíduo e comunidade no pensamento de Platão. A primeira delas – correspondendo à fase inicial de sua filosofia, em que Platão está mais fortemente influenciado pelo pensamento socrático – formula a questão nos seguintes termos: a existência de um ser humano (em seu sentido mais amplo: vital, educacional, moral) depende inteiramente da comunidade em que vive (o que, na época de Platão, era chamado de pólis). Sendo assim, o indivíduo deve ser identificado com o cidadão, isto é, a pólis constitui o âmbito no qual sua vida adquire significação. Mas a pólis não se confunde com a simples agregação de pessoas. Ela é simultaneamente um espaço ético e legal. Por esse motivo, o bom cidadão é aquele que, por um lado, toma para si a obrigação de cuidar do seu próprio aperfeiçoamento moral e dos outros e, por outro lado, se compromete com a obediência das leis. Nos textos que Platão escreveu, Sócrates encarna esse ideal de cidadania.
Texto: “Outra coisa não faço senão andar por aí persuadindo-vos, moços e velhos, a não cuidar tão aferradamente do corpo e das riquezas, como de melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens particulares e públicos [para a cidade].” (Platão, Apologia de Sócrates, 30 b. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, p. 15. Coleção Os Pensadores).
Texto: “Obedece-nos, pois, Sócrates, a nós que te criamos, e não preze os teus filhos, a tua vida, ou o que quer que seja, mais do que a justiça, para que, ao chegar ao Hades[1], possas alegar isto em tua defesa aos que ali governam.” (Platão, Críton, 54 b. Trad. de Manuel de Oliveira Pulquério. In: Platão, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Edições 70, 2009, p. 82).
Texto: “- E o homem justo não será então em nada diferente da cidade justa, no que respeita à noção de justiça,mas será semelhante a ela?
- Semelhante, disse ele.
- Mas uma cidade justa pareceria ser precisamente justa quando os três grupos naturais presentes nela exercessem cada um sua tarefa própria e ela nos pareceria moderada, ou ainda corajosa e sábia, em razão das afecções e disposições particulares desses mesmos grupos.
- É verdade, disse ele.
- Logo, meu amigo, entendemos que o indivíduo, que tiver na sua alma estas mesmas classes, merece bem, devido a estas mesmas qualidades, ser tratado pelos mesmos nomes [os das virtudes referidas acima: moderação, coragem e sabedoria] que a cidade.
- É absolutamente forçoso, disse ele”. (Platão, República, 435 b- c. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001, p. 189. tradução modificada)
Problema: Para Platão,a boa e justa organização da cidade deve obedecer às diferenças naturais entre os homens. Assim, cada um ocupará o seu lugar (de soldado, de artesão ou de governante) segundo os seus dons naturais. Você vê algum problema nesta ideia?

Aristóteles (384-322 a.C.)
Como vimos, Platão, ao aproximar os princípios morais dos princípios políticos, explicita a natureza dos fortes laços que unem indivíduo e comunidade. Em Aristóteles vamos encontrar ponto de vista semelhante, embora formulado de maneira distinta. Um trecho de seu livro que trata da política ajudar a entender a questão.
Texto: “É manifesto (...) que a cidade faz parte das coisas naturais e que o homem é por natureza um animal político, e aquele que está fora da cidade, naturalmente, claro, e não por acidente das circunstâncias, é ou um ser degradado ou um ser sobre-humano” (Aristóteles, Política, 1253 a -5. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993, p. 90. Há traduções para o português, como a de Mário da Gama Kury e Roberto Leal Ferreira. Preferimos utilizar a francesa por resguardar melhor o sentido dessa passagem).
Problema: As concepções de Platão e Aristóteles fazem pensar em uma série de questões que podemos colocar a respeito de nossa realidade política. Por exemplo, como devemos agir quando uma lei nos parece injusta? Quais relações ética e política mantêm entre si? Uma pessoa pode ser realmente feliz a despeito da felicidade alheia? Tente responder a essas questões e, a partir da leitura do texto, elabore outras.

Idade Média.

Tomás de Aquino (1225-1274)
Durante a Idade Média são fortemente alteradas as concepções clássicas (gregas e romanas) acerca do laço que une indivíduo e comunidade. Uma inovação substancial vamos encontrar em Agostinho de Hipona (354-420), sem dúvida um dos expoentes intelectuais desse longo período. Agostinho enxerga a política sob uma luz bem mais sombria do que os gregos e os romanos, o que se explica por sua concepção pessimista da natureza humana. Um vez que a condição do homem, em sua existência terrena, é marcada pelo pecado decorrente da queda, a comunidade a que ele pertence é dos pecadores. Em contrapartida, a vida verdadeira – aquela que é alcançada após a morte e com a graça divina – é correlata à inscrição numa outra comunidade que Agostinho chama de “celestial”. A comunidade celestial (também chamada por Agostinho de “Cidade de Deus”) contém a chave da vida verdadeira e a ela apenas pertence aquele que alcançou a salvação e a beatitude. A “Cidade dos Homens”, por outro lado, é marcada pela violência e pela injustiça e jamais pode se apresentar como o ideal ético para o ser humano. Essa insuficiência moral da cidade terrena condena a política ao nível de uma atividade menor na qual o exercício do poder (essencialmente uma forma de coerção) tem por tarefa conter o excesso da iniqüidade humana.
Embora não fosse a única visão da política na Idade Média, a perspectiva de Agostinho foi hegemônica até que, por volta do século XII, uma nova sensibilidade à política começasse a se formar. Dentre os fatores que contribuíram para essa mudança estão a retomada da vida urbana e a redescoberta dos textos de Aristóteles, que foram quase inteiramente ignorados nos séculos anteriores. O pensamento de Tomás de Aquino deve ser inserido nesse contexto. De modo geral, ele integra a filosofia aristotélica ao pensamento cristão, operando uma síntese de grande importância para a recuperação de alguns temas fundamentais da história da filosofia política. Para nossos propósitos, vale destacar a aceitação da perspectiva aristotélica segundo a qual a vida em comunidade é essencial à existência humana, não correspondendo apenas à necessidade de coerção e controle decorrentes da queda e do pecado. Em outras palavras, Tomás de Aquino rejeita a separação entre política e natureza, o que o permite considerar a política sob uma luz muito mais positiva, associando-a menos à coerção e mais à idéia do bem.
Texto: “Assim alguém domina o outro como livre, quando o dirige, para o próprio bem daquele que é dirigido, ou para o bem comum. E haveria tal domínio do homem sobre o homem no estado de inocência [ou seja, o estado anterior ao pecado original] por dois motivos. Primeiro, porque o homem é naturalmente um animal social: portanto, os homens vivem socialmente no estado de inocência. Não poderia haver uma vida social de muitos a não ser que alguém presidisse, tendo a intenção do bem comum (...) Segundo, porque se o homem ultrapassasse outro em conhecimento e justiça, isso seria inconveniente a não ser que esses dons conduzissem ao benefício dos outros” (Tomás de Aquino,Suma Teológica, Parte I, Questão 96, artigo 4. São Paulo: Loyola, 2002, pp. 668-9. Modificamos ligeiramente a tradução).
Problema: Discuta a seguinte questão: de que modo as concepções religiosas influenciam a visão que temos das relações entre indivíduo e sociedade?

3- MODERNIDADE.


Thomas Hobbes (1588-1679)
Com Hobbes veremos se cristalizar uma perspectiva filosófica que colocará em termos muito diferentes das anteriores o problema da relação entre indivíduo e comunidade. Para iniciar sua análise, poderíamos lembrar uma frase escrita por Plauto (um autor latino de comédias) muitos séculos antes de Hobbes e que diz o seguinte: “O homem é o lobo do homem”. Na introdução de um de seus livros (Do Cidadão), Hobbes reproduz essa frase, o que nos autoriza a inferir que ela funciona como uma espécie de emblema de toda filosofia que coloca em dúvida a tese da sociabilidade natural do ser humano. Se o homem é o lobo do homem, então ele não está, por natureza, inclinado a estabelecer laços duradouros com seu semelhante, os quais requerem a presença de sentimentos morais e de uma consciência ética. Mas o que está aí em questão não é tanto a idéia da maldade natural do ser humano e sim o fato de que os homens, sendo por natureza iguais, necessariamente entram em conflito. O principal objetivo de Hobbes ao nos lembrar dessa frase é mostrar que a vida em comunidade não decorre naturalmente da condição humana. Antes, ela é uma construção dos homens. Uma vez realizada essa construção, o homem, diz ainda Hobbes, torna-se “um Deus para o homem”.
Reformulemos, então, o problema. Para Hobbes, autores como Aristóteles estão equivocados ao afirmar que o homem é um animal político porque a natureza não dispõe os homens para estabelecerem a vida em comunidade. Diferentemente do que pensavam os antigos, os homens, para Hobbes, não são naturalmente desiguais. Todos detêm basicamente o mesmo poder e as mesmas capacidades, mas também os mesmos desejos. Logo, o conflito é uma possibilidade que não podemos eliminar. É nesse contexto que faz sentido a existência de uma sociedade política. As relações políticas (assim como a vida em comunidade) são um artifício cuja finalidade primeira é proteger os homens deles mesmos. Atendida essa necessidade, os homens encontram as condições adequadas para o desenvolvimento de suas habilidades (intelectuais, afetivas, econômicas), constituindo o que poderíamos chamar de “cultura”.
Ora, a realização desse objetivo não pode ser assegurada sem alguma forma de coerção ou de uso da força. E a razão é muito simples: se os homens não estão naturalmente dispostos a se associarem, torna-se necessária a presença de uma instância política (o Estado) autorizada a exercer o poder para fazer com que respeitem as leis. Essa coerção não se confunde, contudo, com a mera violência. Vale lembrar que o Estado, como invenção humana, existe para atender aos interesses humanos e por isso sua origem remonta à vontade dos cidadãos.
Texto: “O fim último, causa final e desígnio dos homens (que amam naturalmente a liberdade e o domínio sobre os outros), ao introduzir aquela restrição sobre si mesmos sob a qual os vemos viver nos Estados, é o cuidado com sua própria conservação e com uma vida mais satisfeita. Quer dizer, o desejo de sair daquela mísera condição de guerra que é a conseqüência necessária (...) das paixões naturais dos homens, quando não há um poder visível capaz de os manter em respeito, forçando-os, por medo do castigo, ao cumprimento de seus pactos...” (T. Hobbes, Leviatã. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, p. 103. Coleção Os Pensadores).
Problema: Hobbes descreve o indivíduo em seu “estado de natureza”, independentemente de toda a sociedade. Quais são as características deste indivíduo, segundo o filósofo? Você considera possível discorrer sobre o ser humano fazendo abstração de toda sociedade?
Sugestão de Atividade: Assista ao filme Ensaio sobre a cegueira e, tomando por referência teórica o pensamento de Hobbes, estabeleça uma discussão sobre as seguintes questões: Que tipo de relação os indivíduos manteriam entre si se não houvesse o poder do Estado? O que justifica a existência do Estado?

John Locke (1632-1704)
Escrevendo algumas décadas depois de Hobbes, Locke ainda está fortemente influenciado pelo mesmo contexto político e ideológico. Sob diversos aspectos, sua proximidade com Hobbes é evidente. Mas, no que toca ao nosso tema, há uma diferença que merece ser salientada. É verdade que Locke aceita a tese que afirma ser a associação política um artifício dos homens e, por isso, resultado de sua vontade. Locke também reforça o sentimento de que a existência individual é irredutível à coletividade. Mas diferentemente de Hobbes, ele acredita que o “estado de natureza” (isto é, a condição originária em que os homens se encontram antes do estabelecimento do poder político) é marcado pela sociabilidade. Em outras palavras, a sociabilidade antecede o político.
Texto: “Tendo Deus feito o homem uma criatura tal que, segundo seu próprio juízo, não lhe era conveniente estar só, colocou-o sob fortes obrigações de necessidade, conveniência e inclinação para conduzi-lo para a sociedade, assim como o proveu de entendimento e linguagem para perpetuá-la e dela desfrutar” (John Locke, Segundo tratado sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 451). “Sendo todos os homens (...) naturalmente livres, iguais e independentes, ninguém pode ser privado dessa condição nem colocado sob o poder político de outrem sem seu próprio consentimento. A única maneira pela qual uma pessoa qualquer pode abdicar de sua liberdade natural e revestir-se dos elos da sociedade civil é concordando com outros homens em juntar-se e unir-se em uma comunidade, para viverem confortável, segura e pacificamente uns com os outros, num gozo seguro de suas propriedades e com maior segurança contra aqueles que dela não fazem parte” (Ibidem, p. 468).
Problema: 1- O conceito de propriedade é central no pensamento de Locke. Identifique como este conceito permite que Locke conceba uma comunidade política que se concilia com os direitos do indivíduo. 2- Você concordaria com a idéia de Locke de que a propriedade é um direito natural?

Jean-Jacques Rousseau (1712-1778)
Com Rousseau vemos uma nova formulação do problema indivíduo/comunidade no âmbito do pensamento político. Leitor dos autores do século XVII (como Hobbes e Locke), Rousseau tentará integrar um forte sentimento da individualidade com um igualmente forte pertencimento a uma associação política, mas por um caminho distinto daquele seguido por seus antecessores.
Em uma contundente crítica à sociedade de seu tempo, Rousseau acredita que o homem vive iludido pela aparência, preso às convenções e aos jogos sociais e, por conseguinte, descentrado de si mesmo. A esfera social é aquela em que o ser humano valoriza as opiniões alheias em detrimento de sua autonomia e autenticidade. A vida social arruína, portanto, a espontaneidade, a liberdade, a independência naturais à condição humana. Mais ainda, degrada o homem, introduzindo em sua alma os vícios e deteriorando seu corpo. “O homem que medita é um perverso”, diz nosso autor em uma conhecida passagem de seu Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens(1754-5). Rousseau recusa, assim, o pessimismo antropológico de matriz agostiniana que tende a identificar o mal com a condição humana após a queda. O mal, para ele, corresponde a uma distorção da natureza operada pela vida em sociedade. De acordo com esse raciocínio, na condição originária (no “estado de natureza”) o homem está ao abrigo de toda iniqüidade, desconhecendo em que consiste o mal. É um estado marcado pela liberdade e pela igualdade.
A crítica de Rousseau à vida social se estende à vida política. As formas de organização política que conhecemos na atualidade exercem o mesmo efeito nocivo sobre a natureza humana, reduzindo o homem a uma condição miserável.
Textos: “O homem nasce livre e por toda parte encontra-se a ferros”. “Encontrar uma forma de associação que defenda e proteja a pessoa e os bens de cada associado com toda a força comum, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedece contudo a si mesmo, permanecendo assim tão livre quanto antes. Esse o problema fundamental cuja solução o contrato social oferece” (Jean-Jacques Rousseau, Do contrato social. Trad. de Lourdes Santos Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 22 e 32. Coleção Os Pensadores”).
Problema: Tente formular alguma justificativa para a idéia de Rousseau de que a liberdade dos homens na comunidade política é superior à liberdade do homem no estado natural.

John Stuart Mill (1806-1873).
Poucos autores foram tão sensíveis à questão que viemos examinando quanto John Stuart Mill. Com efeito, o exame da relação entre indivíduo e comunidade ocupa um lugar importante em sua obra, como podemos ver nos ensaios Sobre a liberdade Utilitarismo. Um dos principais objetivos de Mill é delimitar uma esfera para a ação individual que não fira e ao mesmo tempo não seja ferida pelos interesses coletivos. Embora sob diversos aspectos as análises de Mill convirjam com a de Locke, sua preocupação é de outra ordem, assim como a natureza de sua argumentação. Não é apelando a uma individualidade jurídica que Mill irá resolver as tensões entre sociedade e individualidade, mas dando ao problema um tratamento moral na forma da aplicação do que ele chama de “Princípio de Liberdade”. Este princípio postula que somente no caso de algum dano (harm) ser cometido a alguém a liberdade pode ser restringida. Caso contrário, a individualidade deve ser respeitada. Mas esse princípio, por si só, não é suficiente para justificar a restrição da liberdade. Por isso, é preciso que ele seja referido a um outro princípio que é o da Utilidade (que Mill herda de Jeremy Bentham e submete a severas críticas). Em linhas gerais, este último princípio diz que as ações são consideradas moralmente corretas quando contribuem para promover a felicidade do maior número (de pessoas), e moralmente incorretas quando resultam no contrário.
Não escapa a Mill a inevitável tensão entre o interesse da comunidade e as aspirações individuais. O Princípio da Liberdade tem por finalidade instaurar um equilíbrio de modo a evitar que a promoção do bem individual prejudique a coletividade e de modo que o bem-estar da sociedade não impeça que os indivíduos procurem satisfazer seus próprios interesses do modo que julgarem conveniente.
Texto: “A sociedade pode executar, e executa, seus próprios mandatos; e se expede mandatos equivocados no lugar dos corretos, ou quaisquer mandatos a respeito de coisas nas quais não deveria interferir , pratica uma tirania social mais terrível do que muitas espécies de opressão política, uma vez que (...) penetra mais profundamente nos detalhes da vida, escraviza a própria alma, deixando poucas vias de fuga. Não basta, portanto, a proteção contra a tirania do magistrado; é necessária também a proteção contra a tirania da opinião e do sentimento dominantes, contra a tendência da sociedade a impor, por outros meios além da penalidade civil, as próprias idéias e práticas como regras de conduta aos que dela dissentem; aguilhoar o desenvolvimento e, se possível, a impedir a formação de qualquer individualidade que não esteja em harmonia com seus costumes, e a compelir a todos os tipos humanos a se conformar a seu próprio modelo” (John Stuart Mill. Da liberdade. Trad. de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000, pp. 10-1. A tradução foi levemente modificada).
Problemas: As reflexões de Mill nos auxiliam a pensar algumas dificuldades de nossa própria experiência social. Por exemplo, em que termos podemos conceber na atualidade a tensão entre individualidade e sociedade? Em quais ocasiões podemos perceber o que Mill denomina de “tirania da sociedade”? Em que medida os diversos tipos de preconceitos (social, racial, religioso) podem ser considerados sob a perspectiva de Mill?

4- CONTEMPORANEIDADE.

No âmbito da filosofia política da atualidade, podemos destacar duas correntes que defendem pontos de vistas muito distintos sobre o problema de que viemos abordando. A primeira delas é o Liberalismo e a segunda o Comunitarismo. Deve ficar claro que a referência a elas está longe de esgotar a complexidade das perspectivas políticas contemporâneas. Mas, tendo em vista nossos fins, elas parecem constituir uma polaridade que esquematiza satisfatoriamente as principais maneiras de tratar a questão.

Liberalismo.
Em primeiro lugar, precisamos lembrar que sob o termo “liberalismo” há uma variedade muito grande de doutrinas pertencentes, por sua vez, a campos diversos do pensamento (filosofia, sociologia, economia). Em segundo lugar, faremos uma apropriação muito particular da tradição liberal a fim atender a nossos propósitos, negligenciando, por isso, um tratamento mais rigoroso dessa corrente de pensamento. Nossa estratégia será então destacar um ponto comum aceito por quase todos aqueles que se abrigam (ou são abrigados) sob a denominação “liberal”. Este ponto comum está atrelado à noção de “indivíduo”. Para os liberais (dentre a gama de autores, podemos citar John Rawls, Ronald Dworkin e Thomas Nagel, para ficar com os mais conhecidos), apenas podemos compreender a sociedade e a política se nos referirmos à individualidade que está em seu fundamento. Assim, os bens sociais não podem ser separados dos bens individuais e os princípios políticos devem estar orientados por esses mesmos bens. Dizendo de outra maneira, os liberais são aqueles para os quais nas questões políticas e sociais a primazia deve ser concedida aos direitos individuais e à liberdade. Não deve causar espanto o fato de Locke e Mill serem comumente identificados como membros da tradição liberal.
De modo muito esquemático, poderíamos dizer que a concepção liberal defende uma espécie de “individualismo” segundo a qual a sociedade não pode ser tomada como um fim em si mesma. Antes, ela integra um conjunto de procedimentos com os quais os indivíduos podem satisfazer suas aspirações. A condição necessária para tanto é que a sociedade não apresente um modelo de vida impositivo, único, devendo comportar e acolher (na medida do possível) as diferenças, o que nos leva a concluir que, de acordo com esse ponto de vista, a sociedade deve ser necessariamente pluralista. A conservação desse tipo de sociedade requer que a ação política do Estado ofereça as condições necessárias para que cada indivíduo encontre a oportunidade para exercer sua autodeterminação.
Texto: “Como pessoas livres, os cidadãos reconhecem-se mutuamente como possuidores do poder moral de ter uma concepção do bem. Isso significa que eles não se vêem como inevitavelmente ligados à busca da concepção específica de bem e de seus objetivos finais que abraçam em qualquer tempo dado. Em vez disso, como cidadãos, são considerados, em geral, como capazes de rever e mudar esta concepção com base em fundamentos razoáveis e racionais. Assim, é considerado permissível os cidadãos separarem-se das concepções de bem e fazerem o levantamento e a avaliação de seus vários objetivos finais” (John Rawls, citado por W. Kymlicka in Filosofia política contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 258. Para uma análise mais detalhada desse tema, vale a pena ler o capítulo VII do livro de John Rawls, Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002).
Problemas: A concepção liberal coloca uma série de questões que mereceriam discussão. Por exemplo, se a liberdade individual requer uma sólida base política e social, como motivar os cidadãos a preservá-la quando não constitui um fim nela mesma? Que garantia teremos para nossa liberdade individual se não estivermos comprometidos com a liberdade da comunidade política a que pertencemos? Dizendo de outro modo: Nós poderíamos ser livres sob um governo ditatorial?

Comunitarismo.
Mantendo as mesmas reservas de nossa abordagem do liberalismo, vamos colocar em relevo somente aquilo que consideramos central na corrente de pensamento comunitarista. Antes de tudo, é preciso entender que os comunitaristas rejeitam o individualismo liberal em favor de uma vinculação forte entre indivíduo e comunidade. Segundo sua perspectiva, a vida que escolhemos, o bem que buscamos, nossa identidade são definidos a partir de nossa inserção em uma comunidade, a partir de nosso pertencimento a uma tradição. O “eu” não é anterior aos bens que ele escolhe. Pelo contrário, ele é definido a partir de suas escolhas que nunca se dão em um vazio normativo e sim no interior de uma cultura. Para os comunitaristas (como Michael Sandel ou Alasdair MacIntyre), descobrimos quem nós somos a partir dos fins que escolhemos. Mas a eleição desses fins é fortemente determinada pela tradição a que estamos vinculados. Os valores comunais, portanto, definem nossa identidade. Por esse motivo, os papéis sociais que desempenhamos e as relações sociais que estabelecemos são elementos decisivos para a condução de nossas próprias vidas.
Texto: “... a unidade da vida humana se torna invisível para nós quando uma separação nítida é feita entre o indivíduo e os papéis sociais que ele ou ela desempenha (...) ou entre as realizações de diferentes papéis [no interior] da vida de um indivíduo, de modo que a vida aparece como nada mais do que uma série de episódios desconexos” (Alasdair MacIntyre, Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001, p. 344. tradução levemente modificada).
Problemas: 1- O comunitarismo não acabaria por ceder demais à coletividade e, assim, produzir um efeito contrário ao que deseja, isto é, em vez de levar ao reconhecimento da autodeterminação implicaria a supressão da liberdade individual? 2- O respeito à diversidade e diferença poderia ser um valor compartilhado por todos?

Conclusão:
As diversas abordagens do tema que tratamos nesses tópicos permitem compreender que a relação entre indivíduo e comunidade encontra formulações muito distintas, às vezes discrepantes, ao longo do tempo. Apesar disso, podemos identificar que na Antigüidade grega e durante a Idade Média parece prevalecer uma perspectiva coletivista, isto é, a que privilegia a cultura e a tradição na determinação dos modos de vida dos indivíduos. Por outro lado, a partir do século XVI, o quadro se inverte e a reivindicação de autonomia do indivíduo sobre a comunidade parece ganhar força, sendo defendida por boa parte dos filósofos. Mas essas duas “tendências” (coletivista e individualista) não esgotam a complexidade da questão (podemos reconhecer um individualismo no contexto grego e um coletivismo na modernidade). Como quer que seja, nos dias atuais o debate está longe de ter se esgotado, polarizando mesmo boa parte da reflexão filosófica.

Bibliografia:
AQUINO, Tomás de. Suma Teológica.Vários tradutores. São Paulo: Loyola, 2002.
ARISTÓTELES. PolíticaLes politiques. Trad. de P. Pellegrin. Paris: Flammarion, 1993. Traduções para o português: Mário da Gama Cury. Brasília: Editora da UNB, 1997 (3ª edição); Roberto Leal Ferreira. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
BERTEN, André. Filosofia política. Trad. de Márcio Anatole de Souza Romeiro. São Paulo: Paulus, 2003.
HOBBES, Thomas. Trad. de João Paulo Monteiro e Maria Beatriz Nizza da Silva. São Paulo: Abril Cultural, 1979, Coleção Os Pensadores.
KYMLICKA, Will. Filosofia política contemporânea. Trad. Luís Carlos Borges. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
LOCKE, John. Segundo tratado sobre o governo. Trad. de Júlio Fischer. São Paulo: Martins Fontes, 1998.
MACINTYRE, Alasdair. Depois da virtude. Trad. de Jussara Simões. Bauru: EDUSC, 2001.
MILL, John Stuart. Da liberdade. In: A liberdade/ O utilitarismo. Trad. de Eunice Ostrensky. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
PLATÃO Apologia de Sócrates. Trad. de Jaime Bruna. São Paulo: Abril Cultural, 1987, Coleção Os Pensadores.
-------- Críton. Trad. de Manuel de Oliveira Pulquério. In: Platão, Apologia de Sócrates, Críton. Lisboa: Edições 70, 2009 (2ª edição).
-------- República. Trad. de Maria Helena da Rocha Pereira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2001 (9ª edição).
RAWLS, John. Uma teoria da justiça. Trad. de Almiro Pisetta e Lenita Esteves. São Paulo: Martins Fontes, 2002.
ROUSSEAU, Jean-Jacques. Do contrato Social. Trad. de Lourdes Gomes Machado. São Paulo: Abril Cultural, 1978, Coleção Os Pensadores.

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